1 1989 é um marco na história da fiscalidade portuguesa.
Completaram-se em 2024 trinta e cinco anos sobre a entrada em vigor, em 1 de janeiro de 1989, da grande reforma fiscal que instituiu o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), de que muito se tem falado nos últimos meses.
Substituíram sete impostos então existentes. Seis aplicáveis a cada um dos diferentes tipos de rendimento: os rendimentos do trabalho, dos prédios urbanos e rústicos e da aplicação de capitais, os lucros das empresas comerciais e industriais, os lucros das explorações agrícolas e as mais-valias. A estes impostos parcelares sobrepunha-se um imposto complementar sobre o rendimento global das pessoas singulares e sobre os lucros não distribuídos das sociedades.
Foi criada, por outro lado, a contribuição autárquica, incidindo sobre o valor patrimonial dos prédios rústicos e urbanos, que entrou igualmente em vigor em 1 de janeiro de 1989, constituindo uma receita municipal.
Esta profunda mudança económica do quadro de vida da sociedade portuguesa resultou do estudo sobre a reforma da tributação direta do rendimento realizado por uma comissão especializada constituída por pessoas de reconhecida competência técnica, nomeada em Julho de 1984 e presidida pelo professor Paulo Pitta e Cunha, que apresentou o seu relatório no início de 1987, a que se juntou uma capacidade de decisão esclarecida e corajosa por parte do Governo.
Três anos antes, em 1 de Janeiro de 1986, coincidindo com a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, na sequência dos estudos de uma comissão presidida pelo professor da Universidade de Coimbra José Xavier de Bastos, entrara em vigor o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), um imposto plurifásico sobre o consumo que substituiu o imposto sobre as transações que incidia sobre as operações realizadas por grossistas e retalhistas.
Portugal passou assim a ter um sistema fiscal do tipo dos que vigoravam nos países da Comunidade Económica Europeia.
A reforma de 1989 incluiu também a aprovação do Estatuto dos Benefícios Fiscais que marcou o carácter excecional das situações de desagravamento no pagamento de impostos e extinguiu múltiplos benefícios fiscais existentes destituídos de justificação económico-social.
Só depois de o Governo do PSD de então ter passado a gozar de apoio maioritário na Assembleia da República, na sequência das eleições legislativas antecipadas de Julho de 1987, foi possível vencer os obstáculos à aprovação da legislação exigida pela concretização de uma reforma fiscal, considerada indispensável à modernização e desenvolvimento do país e aos desafios da integração europeia.
2 A coerência do sistema fiscal português, presente na reforma de 1989, foi sendo destruída ao longo dos últimos 30 anos através da introdução de numerosas alterações avulsas aos códigos do IRS e do IRC e do Estatuto dos Benefícios Fiscais, quase sempre ao sabor das circunstâncias conjunturais e dos ciclos políticos.
A tributação das empresas assenta hoje num sistema de grande complexidade que ignora a realidade económica dos tempos modernos.
O IRC tem a invulgar característica de ser progressivo, o lucro tributável das empresas afasta-se frequentemente do lucro contabilístico e a história da derrama estadual que incide sobre o lucro é o exemplo de um grau de instabilidade destrutiva da credibilidade do nosso sistema fiscal que raia o absurdo.
A derrama foi introduzida em 2010, com carácter transitório e excecional, com o objetivo de reduzir o défice orçamental excessivo que então se verificava, com a taxa de 2,5% sobre os lucros superiores a 2 milhões de euros. Em 2011 a taxa passou a ser de 3% sobre os lucros superiores a 1,5 milhões de euros e de 5% sobre os lucros acima de 10 milhões de euros. Em 2012 a taxa de 5% passou a aplicar-se aos lucros acima de 7,5 milhões de euros. Em 2014 uma nova taxa adicional de 7% passou a incidir sobre os lucros superiores a 35 milhões de euros, prevendo a respetiva proposta de lei a eliminação na derrama estadual em 2018. O orçamento do Estado para 2018 não só não a extinguiu como subiu a taxa de 7% para 9%.
A mesma proposta de lei de 2014 estabelecia o objetivo de fixar a taxa de IRC entre 17% e 19% em 2016. Dez anos depois, foi dificilmente aprovada a redução para 20%.
É difícil encontrar nos países da União Europeia (UE) uma história fiscal tão desfavorável à atividade e decisão de investimento das empresas.
Também o IRS foi perdendo coerência e moderação e ganhando complexidade ao longo dos anos.
O número de escalões de rendimento, que era inicialmente de cinco, foi sucessivamente alterado, sendo de nove desde 2022, o segundo maior dos países da UE.
Por outro lado, em 2012 foi criada com carácter temporário uma taxa adicional de solidariedade de 2,5% sobre o rendimento coletável superior a 153.000 euros. Em 2013 essa taxa passou a aplicar-se aos rendimentos acima de 80.000 euros e introduzida a taxa adicional de 5% para os rendimentos acima de 250.000 euros.
Passados mais de dez anos sobre o programa de emergência financeira da “troika”, esta situação ainda se mantém, apesar da sua classificação como “temporária”, o que significa que a taxa marginal do IRS é de 50,5% para rendimentos acima de 80.000 euros e de 53,5% para rendimentos superiores a 250.000 euros, umas das mais elevadas dos países da UE.
O aumento da complexidade e imoderação do IRS ao longo dos anos verificou-se igualmente no regime das deduções fiscais que passaram, em 1999, a ser deduções à coleta, em lugar de deduções à matéria coletável, contribuindo por essa via para o aumento da progressividade do imposto.
A complexidade e a perda de coerência do sistema fiscal português ao longo dos anos está também presente no Estatuto dos Benefícios Ficais, como resulta claro do relatório de um grupo de trabalho publicado em 2019. Nele se concluía pela existência de 542 tipos de benefícios, dos quais 121 no âmbito do IRC.
Muitos deles são benefícios de justificação duvidosa, criados sem uma cuidada avaliação prévia e sem função económica ou social relevante, decididos ao sabor de pressões de grupos de interesses ou do populismo de políticos.
No relatório do Orçamento do Estado para 2025 pode verificar-se que a perda de receita resultante de benefícios fiscais estimada para 2024 ascende a 16,2 mil milhões de euros, com destaque para as taxas reduzidas do IVA, sendo de 4,25 mil milhões de euros no caso dos impostos sobre o rendimento. A perda global de receita fiscal equivale a 5,5% do PIB, uma percentagem muito superior à observada na larga maioria dos países europeus.
3 Cabe ao sistema fiscal gerar os recursos financeiros necessários para financiar o nível de serviços públicos desejado pela comunidade.
Em resultado das alterações introduzidas ao longo dos anos, o sistema fiscal português apresenta-se hoje, 35 anos depois da sua última reforma, como um conjunto caótico de impostos, uma verdadeira manta de retalhos sem coerência e completamente desajustado à situação económica e social do país e às realidades dos novos tempos.
Temos um sistema fiscal muito complexo, obscuro e injusto, que trata de forma diferente realidades económicas semelhantes, contraditório com os objetivos da política económica, penalizando o trabalho, a poupança, o investimento e a inovação, ao mesmo tempo que desincentiva o crescimento e a capitalização das empresas. É um sistema que se tem traduzido em custos elevados em termos dos grandes objetivos que devia promover: mais justiça social, mais crescimento económico e reforço da eficiência na afetação de recursos.
Um sistema fiscal deve ser simples, transparente, compreensível para os cidadãos, ter baixos custos de administração e de cumprimento das obrigações fiscais e ser competitivo no plano internacional.
A tributação deve ser equitativa e moderada, desincentivando a evasão e a fraude fiscal. Deve favorecer o investimento produtivo, a poupança, a produtividade, o progresso tecnológico e o aumento da dimensão média das empresas.
Sendo os impostos também um instrumento de correção da distribuição do rendimento, eles não devem pretender substituir as políticas de apoio social, como aconteceu com muitas das alterações das últimas décadas, através da concessão de benefícios e isenções sem justificação clara que estreitaram as bases de tributação.
Os impostos devem também obedecer ao princípio geral da não discriminação, aliás de acordo com o texto constitucional. Eventuais desvios deste princípio geral e a atribuição de privilégios fiscais deverão ser devidamente fundamentados e delimitados no tempo.
Finalmente, a estabilidade é um valor essencial de um sistema fiscal. Ninguém investe se tiver a noção de que as regras fiscais podem, no futuro, ser facilmente alteradas em sentido negativo. O recurso que se tem verificado a impostos extraordinários, ditos temporários mas que depois se tornam permanentes, é um fator de desconfiança que assusta e afasta os investidores.
Para garantir a estabilidade, deve ser afastada a possibilidade de aprovação de alterações estruturais dos códigos dos impostos e do Estatuto dos Benefícios Fiscais através da Lei do Orçamento.
4 Vários autores e instituições, com destaque para a Sedes no documento “Por uma verdadeira reforma fiscal”, têm defendido a urgência em promover uma reforma profunda do sistema fiscal. O mesmo acontece com o programa eleitoral da Aliança Democrática e com o atual Ministro das Finanças, pessoa de indiscutível competência, no seu livro “Portugal: Liberdade e Esperança”.
Apesar deste amplo reconhecimento a nível técnico, é improvável que a grande reforma fiscal de que o país precisa se possa concretizar na presente legislatura. Tratando-se de matéria da competência da Assembleia da República, a observação das posições e atitudes que têm sido adotadas pelas diferentes forças partidárias nos primeiros nove meses de vida do atual Governo deixa poucas dúvidas quanto à improbabilidade de ser alcançado um acordo político que possibilite a aprovação da respetiva legislação.
Se havia dúvidas, elas desapareceram no decurso do processo legislativo relativo ao orçamento do Estado para 2025. Os deputados propuseram mais de 2000 alterações ao orçamento apresentado pelo Governo, cerca de 230 em matéria de impostos, a maioria sem qualquer fundamentação credível e muitas delas impróprias de um documento que é, basicamente, por definição, uma autorização do Parlamento para o Governo arrecadar impostos e outras receitas e fazer despesas num determinado ano.
Matérias da maior relevância para as gerações presentes e futuras, como a tributação do rendimento, do consumo e do património, são tratadas por alguns deputados com a maior displicência. O que os livros nos ensinam sobre os efeitos das alterações de impostos sobre o bem-estar dos cidadãos é totalmente ignorado, assim como os riscos da complexa situação geopolítica e económica internacional.
Ao longo dos primeiros nove meses da legislatura ficou claro que é mais fácil formar na Assembleia da República maiorias parlamentares de partidos opostos para aprovar alterações populistas de impostos do que aprovar alterações estruturais indispensáveis para que Portugal se aproxime dos níveis de vida dos países mais ricos da UE.
Neste contexto político, o que o atual Governo pode, entretanto, fazer em matéria de impostos, é procurar minorar os estragos e preparar o terreno para que uma verdadeira reforma fiscal possa ser feita no futuro, quando as condições políticas o permitirem.
Nesse sentido, juntamo-nos àqueles que têm defendido que está na hora de o Governo nomear a Comissão da Reforma Fiscal, tal como foi feito em 1984 pelo IX Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, para preparar a reforma fiscal que viria a ser aprovada em 1988. Tal como então, deve ser uma comissão especializada, integrando pessoas da mais elevada competência técnica, presidida por um professor universitário e dispondo dos meios indispensáveis para realizar o seu trabalho. O relatório por ela produzido será um ativo da maior importância para qualquer Governo. É trabalho para um ano.
Sem uma reforma estrutural do sistema de impostos e de outras, como a da administração pública e a da justiça económica, que favoreçam o aumento do crescimento económico, da produtividade e da competitividade, continuaremos a lamentarmo-nos, ano após ano, como fez a comissária europeia Elisa Ferreira, em 2021, que “é penoso ver que Portugal ainda está entre os países mais atrasados depois de tantos anos de apoios comunitários”.
Fazemos votos para que as restrições impostas a Portugal pela realidade dos factos afastem as posições ideológicas dogmáticas que possam dificultar a concretização, não daqui a muitos anos, da reforma fiscal.
Por outro lado, esperamos que os decisores políticos portugueses tenham bem presente que as despesas públicas são gastos do dinheiro dos cidadãos confiado ao Estado pelos impostos e só se justificam enquanto e na medida em que da sua aplicação resultar um benefício social líquido.