“Não caminha, ele corre! Não admira que esteja sempre a encalhar em todo o lado e cheio de nódoas negras.”
“Não termina uma tarefa, vai buscar uma coisa ao quarto e pelo caminho já se esqueceu do que ia fazer e se uma mosca se atravessar, vai atrás dela!”
“Todas as semanas perde lápis, faz desaparecer borrachas, esquece-se do blusão na escola.”
“Pergunto-lhe alhos, responde-me bugalhos, mas quando falo com alguém, faz questão de me interromper.”

Estes podiam ser os relatos de alguns pais numa consulta de Pedopsiquiatria, cujos/as filhos/as possam apresentar sintomas de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). E dizem ainda que estar sentados na cadeira mais do que poucos minutos é impossível, mas com um telemóvel nas mãos já se concentrariam durante horas.

A PHDA, em traços gerais, caracteriza-se pela existência de três sintomas nucleares principais: hiperatividade (no sentido de uma atividade motora excessiva), impulsividade e/ou um défice de atenção. Estes sintomas iniciam-se no período de desenvolvimento de uma criança (daí ser considerada uma doença do neurodesenvolvimento) e têm um impacto significativo nos funcionamentos comportamental, académico, social e emocional da mesma – em suma, na sua vida toda.

Estima-se que afete cerca de cinco por cento das crianças em todas as culturas, podendo prolongar-se pela idade adulta, e a sua origem é multifatorial, sendo importante destacarmos a influência de fatores genéticos: uma percentagem significativa dos pais destas crianças tem o mesmo diagnóstico ou, se não formalizado, pelo menos as mesmas características.

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Muitas crianças com PHDA, precisamente por se dispersarem no meio dos deveres e não os terminarem, ou por divergirem para outra atividade qualquer após encetarem o pedido simples de alguém que, entretanto, ficou esquecido, são injusta e comummente rotuladas de preguiçosas. O seu potencial global está comprometido pela perturbação, pelo que é muito importante serem ajudadas. Ter uma PHDA não é uma escolha.

O diagnóstico da PHDA define-se por um conjunto de sinais e sintomas bem determinados e é clínico, ou seja, baseia-se numa entrevista médica específica e na observação da criança em mais do que um momento. Uma observação única, especialmente numa situação de novidade como é o espaço de uma primeira consulta, à partida, não nos entregaria um retrato fiel do comportamento habitual da criança.

É preciso tempo em Pedopsiquiatria. Não existem análises ao sangue, marcadores biológicos ou exames ao cérebro que diagnostiquem uma PHDA. Além disso, para o diagnóstico poder ser considerado, as manifestações têm que ocorrer em mais do que um contexto de vida da criança/adolescente, pelo que é importante a obtenção de relatos junto de outras pessoas significativas, como professores ou outros educadores.

Apesar de os sintomas poderem ser mais evidentes em determinados contextos do que noutros, e o grau de tolerância aos mesmos também variar de pessoa para pessoa – há pais para quem uma atividade motora acima da normativa não é um problema e há outros para quem uma distração ligeira é intolerável – não se tem um diagnóstico de PHDA na escola e deixa-se de tê-lo em casa. Por outras palavras, não se tem uma PHDA se os sintomas só existirem num enquadramento específico e forem totalmente inexistentes noutro.

E como se trata uma PHDA? Para além de uma clarificação sobre a patologia, que deve ser pormenorizada na proporção do interesse e do desejo dos cuidadores da criança, e ainda de estratégias de aconselhamento parental, existem outras medidas centradas no paciente, onde se destacam a implementação de modificações, na escola, na metodologia de ensino e avaliação, e a intervenção farmacológica – a afamada medicação!

Pois bem, a medicação para a PHDA, quando o diagnóstico é correto, é extremamente eficaz, e a utilidade de se permitir a uma criança/adolescente poder rentabilizar o seu potencial escolar sem a frustração de querer aprender melhor sem conseguir é inquestionável. No entanto, e como a queixa é comum, não é suposto que uma criança medicada fique irreconhecivelmente apática. Nesta situação, ou o diagnóstico tem de ser revisto ou a dose não está ajustada.

Nalgumas crianças, os sintomas predominantes são, apenas, os de défice de atenção; assim, nem todas as crianças com PHDA precisam de ser hiperativas. Da mesma forma, nem todas as que são mexidas e irrequietas têm necessariamente uma PHDA e isto por vários motivos: por um lado, existe uma atividade motora normativa e expectável, que faz parte do desenvolvimento típico das crianças, e que justifica que o diagnóstico de PHDA não deva ser precipitado numa fase muito precoce do seu desenvolvimento; por outro lado, a hiperatividade pode existir no contexto de outras patologias, de outros diagnósticos.

Há miúdos que se agitam para tentar contrariar sintomas emocionais, como a ansiedade ou a tristeza, e a hiperatividade, neste exemplo, assume a função de impedir que a criança bloqueie ou se deprima. Há outros que se agitam em ambientes de maior desamparo e menos estruturantes, como quem procura limites orientadores. Há ainda os que o fazem num contexto relacional, na tentativa de despertar os cuidadores e trazê-los para a relação consigo, quando a atenção que lhes é dirigida não tem sido suficiente. E há também crianças que são hiperativas por mais que uma causa.

Temos de ser cautelosos e criteriosos antes de diagnosticarmos uma PHDA. Da mesma forma, entendemos por que é que é fácil incorrer-se no risco de ela ser sobrediagnosticada, se o médico não for zeloso e perspicaz na contextualização dos sintomas.

Muitas das referenciações que são feitas aos pedopsiquiatras provêm das escolas. Os professores ocupam uma posição privilegiada, pelo muito tempo que passam com os alunos, e pelo olhar atento que sobre eles apontam. É igualmente verdade que uma dificuldade na atenção pode ser mais facilmente identificada nos primeiros anos escolares, quando a exigência do ter que estar quieto e concentrado na sala de aula supera a capacidade da criança. Mas há que ter em conta, ainda, que é particularmente difícil, em consulta, desfazer expectativas de pais referenciados, quando o que esperam é obter uma prescrição igual à do colega do filho, “que tem exatamente o mesmo problema e está muito bem”, quando ambos os problemas, na verdade, pouco têm de semelhante.

Em Pedopsiquiatria é a individualidade de cada um que tem valor: há muitas hiperatividades. É essencial, por isso, que tenhamos sempre o tempo necessário para observar e compreender a especificidade particular e maravilhosa de cada criança.

Margarida Crujo, especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência, é autora do livro O Meu Filho não Precisa de Rótulos (ed. Manuscrito).

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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