As circunstâncias têm-nos musculado a mente, a nossa fisionomia deve ter ganho alguma estaleca no vai-vem de incertezas e incógnitas que a vida em pandemia por Covid-19 nos tem provocado. Quem dera saber como serão as imagens de Ressonância Magnética ao nosso músculo mental… Em consequência, as angústias já não nos deveriam afetar: há vários meses, demasiados dias, que as vivemos com a intensidade exaustiva de treinos focados em ginásio. Mas talvez assim não seja.
Há uma certa teimosia interior que nos impede de cedermos à ideia de que a vida em pandemia passe a ser uma normalidade. A impregnação já tão submersa neste novo mundo incerto, ainda assim, não nos alivia a tensão, nem nos parece querer dar fôlego. Vejamos: os números de novas infeções aumentam determinadamente um pouco por todo o lado, o fantasma da onda prévia contamina-nos o futuro, a almejada vacina vive em esboços, mas parece estar longe de surgir lapidada. Achamos que os países não se poderão alienar de novo, que as companhias aéreas não poderão ter as frotas aterradas, que as cidades inteiras não se poderão isolar novamente em casa. As economias não aguentam, a sustentabilidade de milhões de famílias também não, a saúde mental de cada um, idem. Mas também não sabemos até que ponto a resiliência dos sistemas de saúde dos vários países estica, sendo certo que as fragilidades de muitos estão bem evidentes, não sendo fácil constatar, por exemplo, e falando particularmente do caso nacional, a elevada taxa de mortalidade por doenças não Covid-19 durante os últimos meses.
Fomos regressando às empresas, aos locais de trabalho. Regressámos às escolas. Higienizámo-nos, higienizamo-nos. Investimos em máscaras, também lhes contamos as lavagens, carregamos gel na carteira e, eventualmente, também um boião de hidratante para contrabalançar as gretas cutâneas, fruto do mal da cura. Fazemos o que podemos. Às vezes até fazemos mal, ou porque só descartamos o material de proteção fora do prazo de validade, ou porque o colocamos mal na cara, ou porque levamos inadvertidamente as mãos à boca sem sabermos se estavam bem lavadas (se estavam infetadas!), ou porque damos um abraço a um amigo sem conhecermos exaustivamente os passos que calcorreou nos últimos catorze dias, ou porque… Mas fazemos, de facto, o que podemos.
A escola dos meus filhos começou há mês e meio, começa cedo a escola aqui na Alemanha. A organização tem sido exemplar, o esforço hercúleo, a imaginação transcendente no investimento preventivo que tem sido feito. Ao fim de um mês, continuávamos sem nenhum caso positivo de infeção na escola, apesar da variabilidade de contextos, de nacionalidades, de comportamentos por parte das famílias. Quero crer que, no coração de cada um, não houve um dia em que a preocupação perante futuras infeções não existisse, mas o tempo a materializar-se no registo de zero infetados deu, confesso, mais do que um alento. Foi como uma esperança ilusória, impossível, um sonho transcendente que se estava a viver, mas que se mantinha em segredo interior, não fossem as palavras e as vozes desmanchar-lhe a auréola de invencibilidade. E um pouco depois desse mês, a dita invencibilidade caiu por terra. Surgiu o primeiro caso, e uma turma ficou de quarentena. Veio depois o segundo caso e, com ele, mais duas turmas em isolamento profilático. A sensação que se vive é a de que, pelo menos a quarentena, nos baterá à porta. Só não se sabe quando. E digo “pelo menos”, porque vamos tendo uma esperança egoísta de que a infeção não calhe aos nossos. Mas os filhos dos outros, são também, para eles, os nossos; vivemos numa vertiginosa transcendência global. A incógnita do tempo ameaça-nos como verdade certa.
Enquanto a vacina não chega, a quarentena não bate à porta, as escolas não fecham, parece-me que a globalidade das crianças, não preocupada com o corpo dado ao manifesto, anda encantadamente feliz. Mesmo que as caras estejam semitapadas por máscaras, os olhares são os de outrora e a alegria de privarem com as suas referências fora do lar é indizível. Há uma noção de expansão inerente ao desenvolvimento infantil que, de facto, irradia por poder extravasar as paredes de uma casa.
Como pais, continuemos conscientes e ativos na nossa missão de, simultaneamente, cuidar e educar. Mas tentemos, também, respirar um pouco da felicidade espontânea das nossas crianças. E deixemo-nos contagiar (passe a ironia!) pela sua eterna alegria, porque, tenho a certeza, nós fazemos, verdadeiramente, o que podemos.