Temos “saudades do futuro”, como Teixeira de Pascoaes o escreveu há um século. É que agora, de dentro das nossas paredes, desde a eventual solidão do nosso lar, enquanto fermentamos nos sofás, talvez nos espantemos: como conseguimos não prever (ou não acreditar!) que tudo poderia não passar de um privilégio limitado? Como conseguimos não prever, em pleno século XXI, a benevolência do mundo que nos estava a ser oferecido? Como conseguimos não prever, do alto do nosso domínio sobre tudo, a regalia do tempo solto de preocupações de comprimento tão espraiado? Como conseguimos não prever, vanguardistas nas tecnologias e na investigação científica, a dimensão extraordinária da liberdade de nos conduzirmos por aí, autoconvencidos do nosso destino? Quem nos diria?! Quem nos diria que sair de casa pudesse ser um passo para um chão de medo, ou que a magnificência de um abraço pudesse ser tão inacessível e ao mesmo tempo tão assustadora? Vou deter-me nos abraços: chegámos a reparar, nas centenas ou milhares que demos na vida, que um abraço sentido tem o potencial de conter em si a nossa existência toda, e de nos instantes em que acontece, recolher-nos em aconchego e obrigar o mundo a parar e, precisamente por isso, fazê-lo avançar? É, de facto, algo emocionante.

Muitos países parecem estar a estabilizar-se nos gráficos da curva epidemiológica tradutora da realidade da Covid-19 e, em consequência, a programar o retorno a um quotidiano menos limitado, com a abertura de algumas estruturas comerciais e escolas. São exemplos a Áustria, a Dinamarca, a Alemanha (todos esperamos que as medidas não sejam demasiado precoces e não rebentem com os frutos do que a peito se conquistou). Também Portugal parece estar a ir bem e a conseguir aplanar a ponta da curva, dando tempo aos serviços de saúde para trabalharem, antes da sua saturação. Era, afinal, o maior objetivo do plano de emergência declarado: conseguirmos gerir os nossos recursos e colocá-los à disposição de todos, na medida do que a especificidade de cada um exigir, sem se entrar na desorganização indefinida do caos. Estando a consegui-lo, poderíamos ter melhores notícias? É evidente que não! Mas então, o que pensar quando se ouve que as estradas dos centros urbanos nacionais parecem estar de novo mais lotadas, e as calçadas a ser pisadas por cada vez mais gente? Conseguir um achatamento da curva não traduz uma vitória na globalidade da prova, mas tão somente de uma etapa. Significa que temos que continuar a investir, com a mesma entrega desmedida, no sacrifício do presente. O desenho da curva aplanada não representa uma cama-convite para nos relaxarmos, porque se nos dedicarmos a sestas demoradas, a cama desmorona-se e a montanha íngreme pode de novo surgir. Não podemos baixar a guarda, nem mesmo perante exemplos que o parecem querer contrair.

Sinto uma esperança enorme em que, quando a pandemia abrandar, o mundo se organize de uma forma nova, verdadeiramente planeada. Teremos a oportunidade de voltar a partir de um zero. Os parêntesis em que as nossas vidas agora se suspenderam são um puxão de orelhas a relembrar isso mesmo: haverá um género de segunda oportunidade para recomeçar, para nos relançarmos no ritmo que pretendermos, movidos pelos motores que escolhermos. Seremos capazes de sair da casa de partida repletos das melhores intenções, dos maiores sonhos, e dos mais apropriados utensílios? Seremos capazes de mudar, de não insistir na monotonia de caminhos iguais incansavelmente calcorreados, de nos movermos visionários, finalmente em empatia? Seremos capazes de verdadeiramente tentar incluir os milhões que passam fome no tempo atual, os milhões que vivem em guerra no tempo atual, os milhões que não têm água potável no tempo atual, os milhões que não têm acesso à literacia, para quem o mundo de tanta coisa certa que nós achamos valorizar nunca foi mundo nenhum? Seremos mais capazes de nos entendermos quanto às agressões ao clima e respeitarmos melhor a Mãe Natureza, neste momento aparentemente mais pura? Seremos capazes, depois, de evocarmos (sem retoques pela memória) como está a ser tudo agora?

Tenho uma esperança imensa que sim, que nos entreguemos a essa escolha, de um modo consciente, global e definitivamente.

E, assim, tenho “saudades do futuro”. Creio que a minha voz aqui pode assumir um patamar de universalidade, todos temos saudades do futuro. Um futuro onde tudo vai ficar bem. É um facto que nem tudo tem estado bem, aliás, muito tem estado verdadeiramente mal: as vidas colhidas, os sacrifícios incalculáveis de quem trabalha na linha da frente, os sacrifícios não menos incalculáveis de quem depende de trabalhos tidos como menos essenciais num mundo em pausa, sendo o ganha-pão de um sem número de famílias, a economia global desoleada e mais silenciosa. Ainda assim, o tempo, nalguma indiferença, continua a fazer nascer da noite o dia, do dia a noite, os meses germinam, e as estações do ano também. E o sol vem. Há incontornavelmente um cadência natural que nos transcende, maior que nós e, por isso mesmo, irá ficar tudo bem.

Sim, quantas saudades do futuro! Que venha um futuro melhor do que o futuro que estávamos a viver.

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