1 Afinal não houve “onda vermelha” [e a cor é apropriada, como direi adiante] do sr. Trump e dos seus sequazes nas eleições intercalares americanas da passada terça-feira. Independentemente dos detalhes, esta é a principal mensagem dos resultados eleitorais e tem sido sublinhada por analistas dos vários quadrantes políticos, da chamada esquerda e da chamada direita.

2 Esta mensagem não deve ser menosprezada. Os analistas analisarão os detalhes. Mas a principal mensagem política e intelectual não podia ser mais clara: os eleitores — o chamado ‘povo’, que os trumpistas não cessaram de citar contra as ‘elites’ — falaram tranquilamente, ordeiramente, nas eleições da passada terça-feira. E derrotaram flagrantemente a retórica revolucionária — anti-democrática, anti-liberal, anti-conservadora e anti-republicana — do sr. Trump.

Por outras palavras: o sr. Trump falou o tempo todo em nome do povo, contra as “elites” e contra os resultados das últimas eleições presidenciais, em que foi derrotado, cujos resultados atribuiu a conspiração das elites. Na terça-feira passada, o povo propriamente dito — isto é, os eleitores — falou mais uma vez. E derrotou o auto-designado ‘líder do povo’.

3 Por esta via ordeira e pacífica, os eleitores prestaram homenagem à grande e velha democracia americana — que, na Declaração de Independência de 1776 e depois na Constituição de 1787/88, em nome de “We the People” fundou um sistema político moderado, fundado no governo representativo, na separação de poderes, nos freios e contrapesos e em severos limites contra a vontade revolucionária (de direita ou de esquerda) em nome do povo.

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4 Não deve ser menosprezado o alcance da derrota revolucionária nas eleições americanas. Trump não é só um carroceiro mal criado que grita alto, insulta todos os que discordam de si e, ainda por cima, nunca abotoa o casaco.

Trump é também e sobretudo o testa-de-ferro de uma chamada ‘nova direita’ que em seu nome vem tentando crescer na América e também na Europa — uma ‘nova direita’ revolucionária e anti-liberal que fala em nome do povo contra as chamadas ‘elites’ burguesas e parlamentares, atrevendo-se a contrapor uma ‘democracia iliberal’ às nossas existentes e bem testadas democracias liberais. [Como direi adiante, antes de ser ‘fascista’ esta nova direita tem profundas raízes marxistas, como aliás também foi o caso do fascismo social italiano e do nacional-socialismo alemão].

5 Pois bem: se me é permitido, acabou-se a conversa revolucionária em nome do povo. O povo derrotou a conversa revolucionária. Os eleitores votaram na moderação democrática, liberal, conservadora e republicana.

6 Vamos agora assistir — e já começámos a assistir — à interpretação da derrota de Trump pela esquerda revolucionária e politicamente correcta, também conhecida por woke. Dizem eles que a direita é no seu conjunto fascista e que a única alternativa é uma política radical de esquerda — contra as elites estabelecidas, contra a família heterossexual monogâmica, contra a religião judaico- cristã e o chamado ‘imperialismo ocidental’.

Não é aqui o lugar para responder detalhadamente a esses disparates. Mas o ponto central é o seguinte: a esquerda radical e a direita radical têm as mesmas origens anti-liberais e têm ambas comuns raízes marxistas — na estafada doutrina da luta de classes, no populista ataque às chamadas oligarquias dos partidos políticos parlamentares, na condenação monista do pluralismo da vida cultural, intelectual, civil e política das democracias liberais.

Estes foram os temas comuns do ataque da esquerda revolucionária comunista, do nacional-socialismo nazi (‘dos trabalhadores alemães’ como se auto-designava) e do fascismo social italiano nas décadas de 1920-30, contra as democracias liberais e as economias de mercado do Ocidente.

Winston Churchill captou desde o início a convergência anti-democrática da esquerda revolucionária comunista e do ´nacional-socialismo dos trabalhadores alemães’. Disse ele celebremente num comício em Paris, em 1936:

‘Entre as doutrinas do camarada Trotsky e as do Dr. Goebbels, deve haver espaço para cada um de nós, e mais umas quantas pessoas, cultivarmos as nossas próprias opiniões.’

Esta foi uma das muitas tiradas Churchillianas que exprimiu sem ambiguidades o que poderíamos designar por uma ‘primária’ atitude anti-esquerda revolucionária e anti-direita revolucionária. Churchill orgulhava-se dessa sua ‘primária’ defesa da democracia liberal do Ocidente.

7 Por outras palavras, não há uma única esquerda global nem uma única direita global — ao contrário das lendas herdadas da confusa revolução francesa de 1789. Há e sempre houve pelo menos duas esquerdas e duas direitas. Há e sempre houve uma esquerda e uma direita democráticas que rivalizam entre si no âmbito do Parlamento e simultaneamente comungam da defesa intransigente das regras do jogo demo-liberal. E há e sempre houve uma esquerda e uma direita tribalistas/revolucionárias que odeiam o pluralismo demo-liberal e se reclamam de únicos legítimos intérpretes da ‘vontade do povo contra as elites oligárquicas e burguesas’.

As eleições intercalares americanas da passada terça-feira recordaram essa distinção de forma incontornável. E deram uma lição de democracia contra o tribalismo revolucionário.