No regresso de férias é sempre difícil retomar o fio dos acontecimentos diários e das correspondentes polémicas. Sem querer menosprezar tudo isso, gostaria de eleger alguns temas fundamentais.

Em primeiro lugar, deve ser enfatizada a escolha da dupla Biden-Harris como candidatos presidenciais pelos eleitores do partido democrata norte-americano — que muito enfaticamente rejeitaram o radicalismo esquerdista do sr. Sanders.

Finalmente, os democratas aprenderam alguma coisa com o mandato peculiar do sr. Trump. Este é sem dúvida produto de uma triste cultura televisiva, agravada pelos chamados ‘social media’, que infelizmente vêm dominando a nossa praça pública. Mas não é só isso. Exprime também uma revolta espontânea das famílias e da sociedade civil contra uma ortodoxia politicamente correcta que a contra-cultura da esquerda radical tem vindo a tentar impor através de estruturas centrais não submetidas à concorrência (designadamente, a escola estatal).

A escolha de Biden-Harris emite um sinal para todos os eleitores centrais. Em vez de enfrentar o populismo de direita com o vanguardismo de esquerda, o caminho do meio é o caminho a seguir. Houve no passado os célebres ‘Reagan Democrats’. Já existem hoje inúmeros e distintos ‘Biden Republicans’.

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Em segundo lugar, convém sublinhar que o mandato do sr. Trump tem de facto sido peculiar — sobretudo porque, como venho lamentando há muito, raramente abotoa o casaco e tem o péssimo hábito de insultar os adversários, em vez de os criticar com cortesia. Mas o pluralismo liberal americano acaba de se exprimir onde menos seria de esperar: Melania Trump apoiou a candidatura do marido na Convenção Republicana com um discurso em total contraste com o de Donald: defendeu os imigrantes que admiram a América (como foi o caso dela); recusou atacar os opositores para ‘não acentuar divisões entre americanos’; enfatizou a importância crucial da robustez autónoma da sociedade civil e das famílias. E disse tudo isto num inglês com doce sotaque imigrante — bem como num impecável dress code.

Em terceiro lugar, o pluralismo fundamental exercido pela mulher do Presidente — numa suave expressão de feminismo conservador — exprime o pluralismo fundamental da democracia americana. Deve ser recordado que os comportamentos peculiares do sr Donald não têm impedido a democracia liberal americana de funcionar em pleno. Vários dos seus colaboradores têm sido acusados pela Justiça. E várias decisões do presidente foram anuladas por tribunais independentes. Por outras palavras, a democracia liberal pluralista americana continua a funcionar em pleno — apesar das sérias ameaças violentas geradas pelos tribalismos rivais da direita e da esquerda radicais.

Em quarto lugar, creio que é importante recordar este ponto na Europa. O comportamento peculiar do sr. Trump tem sido usado em certos sectores da União Europeia para reanimar um anti-americanismo que tem infelizes tradições no continente europeu. Convém recordar que o anti-americanismo era comum ao comunismo, ao fascismo e ao nazismo — para já não mencionar os menores franquismo e salazarismo ibéricos. Todos eles, curiosamente, associavam a América ao chamado ‘capitalismo liberal’, a que todos eles contrapunham alguma espécie de comando central pelo Estado.

Também era dito que a América era inculta, comparada com a Europa. Nós, cultos europeus, convém que nos lembremos de que a América pedestre veio por duas vezes no século XX salvar a culta Europa da ditadura e da opressão — e, no caso da II Guerra, da xenofobia e do Holocausto nazi, bem como, a seguir, da tirania comunista.

Servem estas breves recordações, em quinto lugar, para fazer votos de que o crescente anti-americanismo na Europa não sirva de justificação para uma política de apaziguamento face à Rússia e, sobretudo, face ao expansionismo comunista chinês. Sondagens recorrentes apontam para que sectores significativos dos eleitores continentais preferem uma posição de equidistância da Europa relativamente aos EUA e à China. Trata-se de uma dissonância cognitiva clamorosa — que já aconteceu no passado, durante a Guerra Fria com a URSS. Os líderes políticos da União Europeia devem assumir uma posição inequívoca sobre este assunto: a América é uma democracia, qualquer que seja o temporário inquilino da Casa Branca; a China é uma ditadura.

Da mesma forma, em sexto lugar, é de esperar que os líderes da União Europeia e os do Reino Unido não transformem os legítimos desacordos sobre as relações comerciais pós-Brexit numa hostilidade estratégica. Se não houver acordo comercial, as trocas podem continuar a decorrer cordialmente no âmbito das regras gerais da Organização Mundial do Comércio. O ponto a sublinhar é que a parceria estratégica euro-britânica continua a ser crucial para o mundo livre. É certo que a decisão britânica de sair da UE é amplamente discutível — mas é também uma decisão inquestionavelmente democrática.

A propósito de decisões democráticas, por contraponto a decisões burocráticas, termino com a chocante decisão da BBC de retirar o texto, embora mantendo a música, de “Rule, Britannia!’, na edição anual de ‘Last Night of the Proms’. Aprendi com meus pais e meus avós, há muitas décadas, a ouvir com respeito (e por vezes até a cantar) ‘Rule, Britannia!’ — sobretudo a frase final ‘Britons never, never, never, shall be slaves!’ Na longa e triste apatia do salazarismo, este era um hino de liberdade ordeira, parlamentar, pluralista e ‘gentlemanly’ dos nossos mais antigos aliados.

Parece que os actuais líderes da BBC consideram hoje o texto de ‘Rule, Britannia!’ não adequado aos tempos modernos. É uma opinião a que têm direito. Mas por que motivo deveria essa opinião particular de um grupo particular, ainda que certamente ‘esclarecido’, ser adoptada por um serviço público que é suposto ser imparcial? Ainda por cima, sem prévio debate parlamentar entre os representantes livremente eleitos pelos — e que prestam contas aos — eleitores ?