A eutanásia não me choca. É que o sofrimento é provavelmente o que nos une mais, como seres humanos que vivem num mundo carregado de dor. E a dor, comensurável ou não, leva à única pergunta filosófica que interessa: “ser ou não ser, eis a questão” – é a interrogação de Shakespeare, através de Hamlet. A decisão pessoal de morrer, ou não, depende da liberdade de vontade e este é o dom mais precioso que cada um de nós tem, enquanto seres vivos com capacidade para pensar. Durante a vida percebi que não devemos julgar o próximo, pois cada um é que sabe o peso que carrega nos ombros e porquê. E o peso da dor física pode ser tanto que se queira morrer, em vez de suportar um flagelo inimaginável. Quem de nós, humanos unidos pela tal inevitabilidade do sofrimento, pode ajuizar um apelo assim?
A eutanásia não me choca. Se um adulto, que não seja inimputável, tomar a decisão consciente de terminar com a própria vida, em primeiro lugar essa decisão diz respeito a ele próprio, assim como as hipotéticas questões morais, religiosas ou filosóficas. Mas neste caso, se o sofrimento ou a capacidade física não permitirem que seja feito de outra forma, o procedimento medicamente assistido coloca outro ser humano com o peso de participar nessa decisão. Porque a questão é que a eutanásia não depende só da vontade do eutanasiado e esse é um peso que outro carregará, porventura mais tarde do que mais cedo. Talvez a maior tragédia disto tudo é que, apesar de toda a evolução científica, o ser humano chegue a esse ponto de achar que terminar com a vida é a decisão mais racional, perante a inevitabilidade de uma morte que chega insuportavelmente dolorosa.
A eutanásia não me choca, o aborto sim. A ciência diz indubitavelmente que às dez semanas não há um ser humano, frágil e carente como cada um de nós? Aqui não se trata do sofrimento de um ser humano consciente, mas da possibilidade de outro ser humano poder vivenciar o milagre da vida. Aqui não se trata de direitos das mulheres, mas da capacidade de defender e preservar a vida humana no seu estado mais dependente. Aqui não se trata de ideologia ou religião, mas de fazer um pequeno coração inocente parar de bater – e é isso o que literalmente acontece a partir das cinco semanas: hoje sabemos que nesta fase a frequência cardíaca é um pouco superior à da mãe.
O aborto choca porque é um sintoma de uma civilização que se preocupa mais com o hedonismo do que com as gerações futuras. Hoje cada pessoa tem a fantasia romântica de que é a personagem principal de tudo o que gira à própria volta e racionaliza dessa forma o seu comportamento. Mas a tal capacidade de pensar diz-nos algo completamente diferente: somos um pequeno grão de poeira e só aquilo que fazemos neste mundo nos pode tornar mais do que apenas isso. E se a eutanásia é a possibilidade de morrer com dignidade, o aborto é viver sem dignidade – porque é a derrota da esperança. Reafirmo a frase com que comecei: não devemos julgar o próximo, pois cada um é que sabe o peso que carrega nos ombros e porquê. Mas comecemos por não julgar o novo ser que se prepara para nascer. É que se o mundo é um local de dor e sofrimento, também é de conquista e superação. Entre exemplos sem fim, temos o da mãe do Cristiano Ronaldo, que terá tentado abortar quando estava grávida dele, segundo conta a imprensa. Acabou por ter a coragem de levar a gravidez até ao final, mesmo tendo já três filhos e problemas familiares graves. Pergunto como teria sido a vida desta família se o Cristiano Ronaldo não tivesse nascido? E mesmo para quem não gosta de futebol, a sua vida é toda ela uma história de grandeza, vontade, talento e sobretudo de inspiração para milhões de pessoas em todo o mundo. A sua força e determinação são faróis que tanto iluminam, mas que estariam desde sempre apagados se o desespero tivesse tomado conta daquela mãe.
A conclusão é que onde acaba o problema da eutanásia, começa a questão do aborto. Onde termina a última réstia de esperança, começa uma nova. Onde o lívre arbítrio nos leva a desistir, já no final da vida, eis que a mesma liberdade de vontade clama pela oportunidade no início de outra vida. Esta é a razão de serem dois assuntos que estão intimamente ligados pelo mesmo fio condutor, apesar de um estar na chegada e outro na partida. Se a eutanásia é um assunto que terminará em breve, o aborto é outro que importa ressuscitar. Vamos falar de apoiar quem decide continuar uma gravidez em situações difíceis, de incentivos à natalidade num país muito envelhecido e de legislar a favor da liberdade de viver.