Quero em primeiro lugar dizer que sou ateu e que sou totalmente favorável ao direito de eutanásia para as pessoas, quando salvaguardadas as liberdades primordiais de acesso à saúde e cuidados paliativos.
Há já vários anos que se tenta aprovar uma lei de despenalização da eutanásia, invocando o direito, e bem, de a pessoa decidir o que fazer com a sua forma de vida, ironicamente sem dar hipótese às próprias pessoas, à partida e por referendo, de opinar sobre a mesma. Após vetos do Presidente da República ou chumbos do Tribunal constitucional, procede-se a modificações no sentido de a aprovar. Tem sido talvez uma missão insólita dos grupos parlamentares recentes, que consideram que neste caso a Constituição pode ser mutada, mas em tantos outros casos interpretam a Constituição como o livro entregue por Deus na Terra, intocável, e que é ofensa ou extremismo pensar em contrariar. As motivações parecem extravasar muito o interesse nas pessoas quando vemos um folclore de propostas, como foi o caso de quatro propostas, quase iguais, discutidas no mesmo dia na Assembleia da República.
De facto, algumas das frases que conseguimos ler nas propostas de Lei dos últimos anos são algo poéticas, não fossem tentar enquadrar algo que se pressupõe mau, não a medida, mas a condição que a motiva. Deixo-vos com um pequeno exemplo “… é, desde de que não prejudique terceiros, a arquiteta livre do seu destino, mesmo nos momentos mais difíceis da sua vida.” Fiquei desiludido ao perceber que a frase não é original, sendo uma adaptação de “man is the architect of his own destiny” de Frank Millerm, ou também uma quási-adaptação de José Sócrates, Ricardo Salgado ou João Rendeiro, ricos donos do seu destino próspero, com a pequena diferença de terem prejudicado terceiros.
Não posso deixar de apontar também algo atrevido nos diversos documentos entregues nos últimos anos, como é a frase “…junto da sociedade portuguesa, cuja sensibilidade para o tema tem claramente evoluído neste sentido”. Pesquisei na bibliografia, mas não encontrei qualquer estudo que possa sustentar este “claramente”, sendo que para tal havia, entendo eu, que realizar um referendo. Eu não acredito que um referendo deva decidir o destino de cada um, que só a cada um diz respeito, mas entendo constituir um bom ponto de partida e discussão.
Se pensarmos na vida como uma simples sequência, teríamos nascimento-vida-morte. Podemos tornar a sequência mais complexa para algo como nascimento-vida-doença-morte. Estou a pressupor o uso da palavra doença como uma doença terminal, excluindo todos as doenças que poderão ser encontradas em fases intermédias.
Bem, passaremos a complicar para algo que ficaria nascimento-vida-doença-morte/eutanásia. Até aqui alguém reparou que faltou algo? Provavelmente não, nem tão pouco se tem reparado, ou se quer reparar, em Portugal. É que antes da eutanásia, havia que adicionar outro fator à sequência, seria nascimento-vida-doença-cuidados paliativos-morte/eutanásia. E é de facto isto que está a acontecer em Portugal, ao pretender-se despenalizar a eutanásia, quase que num exercício de urgência, sem reconhecer a emergência de evoluir e concretizar cuidados paliativos efetivos e dignos em Portugal. De forma resumida, quer-se rapidamente sobrepor a uma vida medicamente assistida, uma morte medicamente assistida, ou melhor, uma morte medicamente provocada. É de facto disto que se trata.
Foi recentemente publicado na revista “The Lancet”, uma das melhores revistas científicas da área médica, uma pequena review que tem tanto de pequeno como pertinente, e de facto, sendo um assunto tão fraturante, em poucas palavras os autores disseram que baste. Os cuidados paliativos são uma das áreas mais negligenciadas no sistema de saúde Português, de acordo com um report publicado nessa mesma revista em 2018. Atentem a 2018, não falamos de 1950. Sabemos que as condições que envolvem a necessidade de cuidados paliativos estão a crescer, fruto do aumento da esperança de vida e com ela a complexidade dos quadros patológicos. Também sabemos que Portugal tem a 4ª população mais velha do mundo, podendo chegar ao pódio até 2050, devendo-se muito à baixa natalidade e nem tanto à esperança média de vida, que se situa justamente na média europeia. Contudo, a Eurostat demonstra-nos que, embora a esperança média de vida de Portugal esteja na média da Europa, o número de anos de vida saudável expectável é dos mais baixos da Europa, a partir dos 65 anos situa-se em 7 anos, inferior à média europeia de 10 anos. A título de exemplo, após a reforma em Portugal, resta-nos 5 anos de vida saudável e na Suécia restam mais do dobro.
Os autores da revisão falam mesmo na necessidade de uma “Revolução Copernicana” na gestão dos cuidados Paliativos no nosso país, que permita o acesso igualitário aos mesmos, tendo em conta que, por um lado, vemos o sistema privado a crescer em número e dimensão dos seus hospitais, incluindo unidades de cuidados paliativos, e, por outro lado, temos o sistema público, ou melhor, os decisores políticos, preocupados com a lei da eutanásia. O problema é sempre o mesmo em Portugal, a escassez de recursos económicos ou a sua incorreta distribuição e aplicação. Não temos os recursos suficientes na Saúde: nem económicos, nem de equipamento, nem de pessoal, nem da “resiliência do pessoal”, e temos uma política de gestão focada no short-therm e não no planeamento holístico e de longo prazo.
Se consultarmos o documento de Health system review (European Observatory on Health Systems and policies, 2017) referente a Portugal, encontramos que “a organização dos cuidados paliativos em Portugal é ainda incipiente” e que em sequência “não há dados disponíveis que permitam a estimativa de necessidades não atendidas nesta área”.
Num artigo recente, a Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), Catarina Prazes, afirma que “…nove anos após a publicação da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos…” os “Cuidados Paliativos continuam a estar inacessíveis a muitos doentes e famílias, pois não estão democratizados de forma natural nos serviços de saúde”. Escreve ainda que “no Parlamento ouve-se falar de Cuidados Paliativos como uma escolha, ao lado de outras opções para a forma de morrer. Isto apenas tem um significado: falta de cultura paliativa. Falta de literacia sobre esta matéria.” ou “seria de esperar também que todas as faculdades que formam profissionais de saúde tivessem nos seus currículos de formação pré-graduada uma unidade curricular de cuidados paliativos. Mas isso ainda está longe de ser uma realidade”.
Encontramos algo mais preocupante ainda que transcrevo na íntegra do artigo de opinião de Cataria Prazes: “Após a Lei de Bases de 2012, existiram dois Planos Estratégicos para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. Estes documentos apresentavam a planificação com base numa realidade de quase ausência deste tipo de cuidados, em quase todo o lado. Essa foi a explicação da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos cessante para o facto de muitos objetivos serem colocados pelos mínimos e alguns abaixo dos mínimos. Mas mesmo esses objetivos, mínimos, não foram cumpridos.”
A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos diz-nos que “Estamos muito longe do acesso garantido a Cuidados Paliativos por parte de todos os cidadãos que deles necessitem” e que “se estima que apenas 20% dos doentes adultos com necessidades paliativas tenham acesso a estes cuidados e que menos de 5% dos doentes pediátricos tenha hoje acesso a estes Cuidados”. Na presença de dor e sofrimento, não existe liberdade ou autonomia. Estarão os restantes 80% adultos aptos para decidir sobre a sua eutanásia?
Porque a morte por compaixão é a morte da compaixão. Sempre que estas frases curtas parecem encerrar em si demagogia, devemos atentar na origem das próprias palavras, na semântica. Neste caso compaixão deriva do latim compassione, a compreensão do estado emocional do outro, sem invadir, no entanto, o seu espaço (leia-se administrar substâncias como 5-Ethyl-5-(1-methylbutyl)-2,4,6(1H,3H,5H)-pyrimidinetrione).
No final, é verdade que o indivíduo deverá ter livre-arbítrio para decidir o seu destino. Contudo, esse mesmo indivíduo não poderá ter a sua decisão enviesada pelo deficiente acesso às melhores técnicas de cuidados paliativos. Na mesma ordem de pensamento, uma liberdade enviesada é a morte da liberdade. Qualquer cirurgia, por mais importante que fosse, seria imediatamente recusada pelo paciente, se não existissem anestésicos e analgésicos. Mas a partir do momento que existem, tornam-se algo rotineiro. As decisões são sempre resultado de uma equação complexa, que no caso da eutanásia, depende muito dos cuidados a que o doente tem acesso, do conhecimento, das condições psicológicas, e muito mais. Mas Portugal não tem o hábito de seguir as sequências lógicas, basta pensarmos que, a seguir às autoestradas, construíram-se as portagens, mas nunca se construiu uma passagem para espécies selvagens.
De facto, o artigo 3º da Lei n.º 31/2018 de 18 de julho estabelece que o doente tem direito a receber informação detalhada dos diferentes cenários clínicos e tratamentos disponíveis para a sua doença. E é exatamente na palavra “disponíveis” que temos que nos reter, evoluindo o que está disponível até ao melhor que a ciência e medicina sabem, antes de pensarmos no passo seguinte.
É facilmente observado o que há para resolver primeiro, quando percebemos, por exemplo, que o incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos em oncologia estão a subir desde 2014 atingindo um máximo de 25% em 2020. O que queremos dizer a estas pessoas é que isto é secundário, e que primeiramente há que lhes garantir que se as coisas correrem mal terão a hipótese de requerer a eutanásia?
Os cuidados paliativos deverão ser explorados na sua extensão máxima e proporcionar ao paciente todos os dados para que possa tomar a sua decisão em consciência. Hoje sabemos que faltam dados ao indivíduo para que possa tomar a sua decisão. É como se déssemos a escolher a um povo indígena de uma profunda floresta, afastado da civilização moderna, atravessar o Oceano Atlântico ou a morte, sem nunca lhe apresentarmos um navio ou um avião.
A decisão de terminar com a sua própria vida é algo que apenas poderá ser aceite, após dotar o paciente de todo o conhecimento e técnicas disponíveis na Ciência, não em determinado hospital. Neste momento isso não acontece. Por isso, eutanásia sim, mas ainda não.