A complexidade e densidade do tema, o que aqui está em causa, a surpresa no calendário da aprovação, exige que voltemos a olhar para ele, tentando evitar a queda colectiva no precipício, evitando um caminho perigoso que não queremos trilhar. Um olhar necessariamente sumário, mas focando aspectos cruciais.

1 Sobre a forma deste processo

Enquanto médica que há mais de 25 anos tem tratado milhares de pessoas em fim de vida, que acompanha de perto a realidade das suas vidas – e não se limita a perorar sobre o tema de forma teórica, ideológica ou com distância e desconhecimento pouco recomendados -, penaliza-me assistir a um processo conduzido de forma que faz crer que as pessoas doentes, em fim de vida e sem recurso aos cuidados de saúde de que necessitam, não importam ou são joguetes nas mãos de decisores políticos irresponsáveis. Talvez se verdadeiramente estivessem próximo dos que sofrem, conhecessem o que lhes podem oferecer para viver, não fossem tão lestos em avançar com esta irresponsabilidade.

Falamos de dezenas de milhares de portugueses, cuja Qualidade de Vida e Dignidade nos últimos anos e meses de vida está comprometida e ameaçada, a deles e das suas famílias. Esta lei não é seguramente para eles, ainda que, por falta da devida resposta que carecem, se possam ver empurrados para tomar, sem liberdade, uma opção que não desejam.

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Esta é a lei que, para o momento que vivemos, é prioritária e que os portugueses desejam e necessitam? Esta é a lei que, com a pandemia ainda a decorrer, com as carencias nos serviços de saúde que já conhecíamos e que com ela se evidenciaram ainda mais, responde às necessidades insatisfeitas da larga maioria dos portugueses? Agilizar a execução da morte – que não constitui nenhum tipo de cuidado de saúde – ou viabilizar que os cuidados de saúde cheguem aos que os não têm? Esta é a lei de uma certa elite minoritária pensante ou é a lei de que a larga maioria dos portugueses, nomeadamente os mais vulneráveis, precisa? Prioridades seguramente trocadas.

Bem podem dizer que tudo foi cumprido, que a reflexão está encerrada, que a lei foi melhorada – foi mesmo??! – que é legítimo fazer esta votação agora. Legítimo até poderá ser, na marcha parlamentar tristemente apressada, mas será que é ético, que é correcto? Não parece mesmo uma pirueta e cambalhota de deseperado, que tenta, por todas as formas, fazer vencer através de manigâncias e tortuosidades aquilo que de outra forma, mais ponderada e ajustada ao tema em causa, não lhe é possível?

Triste exemplo então, de falta de cidadania, de elevação, de correcção, de fazer Política (com P grande!). Quanto à forma do processo, estamos pois, sumariamente conversados.

2 Sobre o conteúdo do texto

E quanto ao conteúdo no novo texto, a tal versão longamente ocultada, que conhecemos às pressas para justificar o avanço nos trabalhos parlamentares?

Convirá lembrar que, também com ilusões e subtilezas, a versão actual se afasta claramente do que incialmente foi anunciado pelos promotores da iniciativa: prometiam uma “lei equilibrada e segura” (o que convinha anunciar, quando se começou a trilhar este percurso). Pois nem é uma lei que garanta que apenas os doentes terminais (consensulamente definido como periodo de ultimos 3-6 meses de vida) com doenças graves, progressivas e irreversíveis serão eutanasiados, e as pretensas salvaguardas enunciadas não passam de ilusões, facilmente ultrapassáveis (e por isso, de salvaguardas pouco têm). Em tão pouco tempo, e ainda sem lei aprovada, já vimos como, uma vez aceite que o sofrimento é razão para executar a morte de alguém, as razões desse sofrimento vão-se alargando e alargando e alargando.

Se duvidam, vejam, estudem a fundo – mas isso não se pode fazer com esta pressa! – a realidade canadiana, um dos países que mais recentemente aplicou este tipo de lei: com a versão aprovada em 2016, temos hoje, apenas 5 anos depois, mais de 20000 pessoas eutanasiadas e o alargamento da lei – seguindo o caminho já praticado na Holanda e Bélgica – para as pessoas com doenças psiquiátricas e doenças crónicas não terminais.

No nosso país, esta será a lei que, a ser aprovada, permitirá que as pessoas com deficiencia sejam eutanasiadas, que as pessoas com doença mental grave sejam eutanasiadas, que as pessoas com doenças crónicas não necessariamente terminais sejam eutanasiadas. Por isso, não nos iludam também a dizer que será da morte de uns poucos que se trata.

Esta será a lei que, a ser aprovada, não contribui para que a morte – e sobretudo a vida! – de milhares de portugueses seja mais digna, muito menos para que, como colectivo, sejamos mais modernos e solidários.

Esta será a lei que, a ser aprovada, será um engano sobre as liberdades individuais e um prejuízo para o bem comum.

Os senhores promotores da eutanásia podem ter muitas razões, podem querer assim aquietar as suas consciências e tentar iludir as nossas… mas nesta matéria, não têm Razão.

Não, este não pode ser o caminho. O processo vai seguramente prosseguir e não acabará nem assim, nem aqui. Por todos, pela Dignidade de muitos e pela defesa dos mais frágeis.