Quando somos confrontados com uma polémica em que num dos lados, numa posição relativamente solitária, temos Nuno Melo, um normalíssimo político português, e no outro, acompanhados por vastíssimas leituras, se encontram José Pacheco Pereira e António Guerreiro, talvez os mais importantes intelectuais públicos do país, manda o elementar bom senso que não se perca tempo e se dê o assunto por encerrado. Já a moral cristã, pelo contrário, impele-nos a ter alguma piedade pela parte mais fraca, ajudando-a, caso seja possível, a desenvencilhar-se do nó em que – voluntariamente, diga-se! – se envolveu. Como a moral cristã é uma das coisas que, alegadamente, o “marxismo cultural” pretende destruir, deixemos o bom senso de lado e alimentemos um pouco mais o debate.

Respeitando o “ar do tempo”, existe hoje em dia uma polarização sobre este conceito que deixa pouquíssimo espaço a quem não vê o “marxismo cultural” como uma ameaça totalitária e omnipresente e que, em simultâneo, também não o encara como uma mera teoria da conspiração nascida na última década do século XX e alimentada, na actualidade, com doses industriais de nutrientes saídos directamente dos silos da extrema-direita. Sendo esse o espaço em que me posiciono, tentarei, a partir destes textos, alargá-lo. Importa igualmente dizer, que acreditar na existência do “marxismo cultural” (é o meu caso) não implica negar a existência de fenómenos semelhantes no outro canto do ringue. Ainda agora, através do “caso” Nova SBE/Susana Peralta, que transpirou para os jornais, tivemos um exemplo de algo que facilmente pode ser enquadrado na categoria de “capitalismo cultural”. Mas concentremo-nos, por enquanto, no conceito que despertou a atenção do eurodeputado do CDS e dos dois colunistas do “Público”.

Nuno Melo, que não domina a teoria (e o jargão) marxista, deu o flanco logo nas primeiras linhas, citando Marx para explicar a “supremacia” que identificou no título do seu artigo. Pacheco Pereira, que domina ambos, viu a baliza aberta e chutou para golo, não resistindo a comemorá-lo na cara do adversário, de quem obviamente não gosta (está no seu direito), através da expressão “Ignorância Atrevida” que trazia estampada na t-shirt interior e que ficou à vista quando levantou, eufórico, a camisola oficial. O que deve fazer o árbitro perante uma situação destas? Cartão amarelo ou simples admoestação verbal?

Pacheco Pereira tem alguma razão quando afirma que Karl Marx, caso ressuscitasse, olharia para o Portugal de 2020 como um país em que a força material dominante é a da burguesia. O 25 de Abril de 1974 não levou à instalação e exercício de uma ditadura do proletariado, fase transitória imprescindível no caminho para o comunismo, e, por isso, estamos ainda no estádio anterior, em que os burgueses controlam os meios de produção com os quais exploram o povo. Assim sendo, e uma vez que, para Marx, “a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante”, é completamente impossível que a supremacia cultural esteja, neste momento, nas mãos da esquerda. Acontece que – e por isso atribuo “alguma” e não “toda a razão” a Pacheco Pereira –, se Karl Marx ressuscitasse agora, 172 anos depois da publicação do Manifesto que escreveu com Engels, perceberia, mais dia menos dia, algo que talvez fosse impossível de adivinhar em meados do século XIX: entre o capitalismo liberal oitocentista – chamemos-lhe “8” –, em que o Estado gastava dinheiro com as forças armadas e pouco mais, e a ditadura do proletariado – chamemos-lhe “80” –, em que a burguesia é liminarmente expropriada à força e tudo fica sob controlo do Estado, existem várias outras opções (setenta e uma, se a matemática não me falha), nomeadamente a que está em vigor em Portugal. É verdade que não houve uma Revolução, pelo menos ao estilo da que teve lugar na Rússia em 1917, mas ocorreram várias “revoluções” entre a publicação do Manifesto e a publicação do artigo de Nuno Melo que relativizam a utilização equívoca da palavra “supremacia”. Depois das alterações profundas provocadas pelo nascimento da Doutrina Social da Igreja, do Estado Social, do Keynesianismo, e perante um cenário em que o Estado controla directamente quase 50% do PIB e indirectamente mais uma boa fatia, dizer-se, em 2020, que a força material dominante no nosso país é a da burguesia é, no mínimo, tão duvidoso como a frase do eurodeputado do CDS.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Vamos, no entanto, esquecer este gigantesco pormenor, e fazer de conta que vivemos numa sociedade capitalista parecida com as que foram alvo da análise de Marx. Pacheco Pereira diz – e está certo ao dizê-lo – que a seta do poder, numa interpretação marxista, se faz a partir “de baixo”, da infraestrutura produtiva para a superestrutura, sendo a segunda (que inclui, entre outras realidades, o Estado, o Direito, a Moral e a Cultura) um mero reflexo da primeira. Logo, se a infraestrutura é dominada pela classe que detém o capital, nunca a cultura, que faz parte da superestrutura, pode estar a ser controlada pelos descendentes do barbudo filósofo germânico. Mas Pacheco Pereira afirma também, peremptoriamente, que nenhum dos grandes teóricos do marxismo, Antonio Gramsci e György Lukács incluídos, se afastou deste ponto essencial, e sobre essa asserção, relativa a dois senhores essenciais para debater o “marxismo cultural”, julgo necessário algum contraditório.

Não é essencial tomar posição sobre o carácter – ortodoxo ou revisionista, para não fugirmos à gíria – destes autores, uma discussão interminável, bastante estéril e tremendamente maniqueísta, para conseguirmos identificar as novas perspectivas que lançaram. Até porque as suas posições não se mantiveram estáticas ao longo da vida e, a utilizarmos demasiada rigidez na definição de “verdadeiro marxismo”, nem Lenine se safava.

Sobre o húngaro Lukács, para começarmos pelo mais velho, importa dizer que embora não tenha sido o primeiro socialista a olhar atenta e interessadamente para a cultura, foi possivelmente o primeiro a colocá-la no coração da batalha entre burgueses e proletários. Até aí, esse lugar era exclusivo do “modo de produção da vida material”, o tal puro terreno marxista da luta de classes. Lukács percebeu que considerar a estrutura económica como “motor da História” era, na melhor das hipóteses, uma teoria incompleta, pois havia, além do que vinha “de baixo”, muito trabalho a fazer a partir “de cima”.

A verdade é que, nos países considerados, sob o ponto de vista “científico” de Marx, maduros para a revolução socialista, esta teimava em não acontecer. Tivera lugar na Rússia, que, por ser uma sociedade agrária, quase feudal, não estava, de acordo com a teoria, pronta para tal evento; e, paradoxalmente, nas sociedades onde vigorava o capitalismo industrial avançado (Inglaterra ou Alemanha), países “cientificamente” no ponto certo, a fatalidade histórica, o destino inevitável, não se cumpria. Lukács, olhando para esta dupla falha da “ciência” marxista, reflectiu sobre o assunto e quase que o podemos imaginar, em frente ao espelho, a proferir em luísfilipevieirês um sonoro “Que passou-se?!”. A resposta (ou uma das respostas, que estes assuntos são sempre complexos o suficiente para não haver resposta única) chegou na forma de um défice: faltava às massas trabalhadoras, principalmente no desenvolvido Ocidente, “consciência de classe”, consciência revolucionária e consciência do processo histórico e do papel que lhes cabia nesse processo.

Infelizmente – para Lukács –, esta resposta não caiu bem em Moscovo, que já era, terminada que estava a guerra civil (1917-1923), totalmente vermelha por esses dias. Pacheco Pereira nega que o filósofo húngaro se tenha distanciado do materialismo marxista, mas as autoridades soviéticas não tiveram essa opinião, motivo pelo qual o acusaram de revisionismo e de, lá está, idealismo. Lukács aceitou a acusação e foi até à URSS submeter-se à tradicional sessão de autocrítica. Sim – afirmou –, os seus escritos eram idealistas e ele penitenciava-se por isso.

Recorde-se que, para Hegel (um dos expoentes da dialéctica e do idealismo), era a consciência dos seres humanos que impulsionava a evolução da sociedade, sendo essa consciência visível na religião, na moral, na cultura. Mas Marx, embora lhe tivesse pedido emprestada a dialéctica, não quis trazer o idealismo, substituindo-o pelo materialismo. A consciência não determina a vida, concluiu; é a vida – ou seja, o dia-a-dia dos homens e das mulheres – que determina a consciência. O que se vai passando na mente de um trabalhador fabril nasce daquilo que vai acontecendo na fábrica, e é por isso que a “consciência de classe”, vista a partir deste miradouro, é um dado mais ou menos adquirido, o que levou Engels e Marx a escreverem, em 1844 (!), no livro A Sagrada Família, que uma grande parte do proletariado, pressionado e oprimido pela sempre crescente exploração, já estava consciente da sua tarefa histórica e a caminho da acção revolucionária. Lukács, estranhando a demora de mais de sete décadas, percebeu que os operários andavam perdidos e anestesiados e que precisavam da orientação dos intelectuais e de serem por estes espicaçados. O trabalho a partir “de cima” era, assim, decisivo.

Há uma máxima famosa que situa o momento em que Karl Marx pega na dialéctica hegeliana e substitui o idealismo pelo materialismo: “Hegel fazia a humanidade caminhar sobre a cabeça; é preciso colocá-la de novo a caminhar com os pés”. Lukács, baralhando novamente esta marcha, divide-se entre cabeça (Hegel) e pés (Marx), entre ideias (o desenvolvimento do espírito) e matéria (a evolução económica). A cultura não é apenas um reflexo, como defende Marx; é também um local autónomo da batalha pela conquista da “consciência de classe”, que não é, de todo, um dado adquirido.

Pacheco Pereira acusa Nuno Melo de não perceber o “bê-á-bá da coisa”, sendo a “coisa” o marxismo. Ora, eu não ponho as minhas mãos no fogo pelas leituras de Nuno Melo. Mas ponho-as, sem hesitar, pelas de Pacheco Pereira. E sei, por isso, que ele sabe perfeitamente que nisto da “coisa”, que é constituída pelos dois pensamentos marxianos (o da juventude de Marx e o da maturidade) e pela história marxista (onde entra o pensamento dos seus discípulos e avatares, bem como as experiências reais do comunismo), não há bê-á-bás. Há, isso sim, pedindo emprestado o famoso título do arquitecto Robert Venturi, muita “complexidade e contradição”.

(continua)