A Polícia Marítima (PM) é a única força de segurança que não tem uma lei orgânica – um diploma legal que define o regime e organiza um serviço público. Um tal diploma é básico e de senso-comum na organização de qualquer serviço público; e é, em especial, uma exigência implícita na Lei Quadro da Política Criminal (nº1 do art.11º da lei 17/2006). No caso das forças de segurança, o seu regime está abrangido pela reserva absoluta de competência legislativa do parlamento (alínea u) do art.164º da CRP), competência que pode ser, e tem sido, exercida por lei simples.
A falta da lei orgânica da PM faz-se sentir desde que deixou de ser “o braço operacional” do capitão de porto, com a transformação em força de segurança nacional, pelo decreto-lei 248/95 (que pôs em vigor o Estatuto do Pessoal da PM). Nestes 27 anos, não se eliminou esta lacuna, apesar de o PCP ter, por duas vezes (pelo Projeto de Lei nº237/XIII-1ª em 2016, e pelo Projeto de Lei nº436/XIV-1ª em 2020), apresentado projetos de lei para o efeito, rejeitados sem qualquer discussão substantiva, nem propostas de alteração ou apresentação de alternativas, na academia, nos media, e no meio político, incluindo o parlamento.
A PM é também a única força ou serviço de segurança sem uma carreira que permita ao seu pessoal ascender a todas as posições dirigentes, sendo estas atribuídas exclusivamente a oficiais da Armada. Estes, sem formação adequada para o efeito (são formados para serem militares e não para serem polícias), exercem os comandos na PM em comissões temporárias e quase todos em acumulação com cargos de capitão de porto, com relevantes benefícios pessoais. É fácil de prever que os oficiais da Armada se opõem a normas que lhes retirem vagas e benefícios.
Desde 1982 (ou até 1976) que os órgãos de soberania eleitos têm desdenhado a PM e dispensado a respetiva lei orgânica, e escolhido seguir a narrativa das poupanças (criada por oficiais da Armada), sem sentido crítico e desprezando vozes independentes. A narrativa das poupanças não é verdadeira, mesmo que seja apregoada mil vezes – tal como não se poupa nem o país ganha, por, nos hospitais, se substituírem enfermeiros por médicos (ou vice-versa) ou se despedirem enfermeiros por já haver médicos (ou vice-versa).
Nem a óbvia inconstitucionalidade, que resulta de ter o comandante do exército do mar a dominar uma polícia, tem levado os órgãos de soberania eleitos a atuar. Bem dizia o saudoso Miranda Calha que “os políticos têm receio de enfrentar os almirantes”. E isso está de novo à vista.
Os projetos de lei do PCP seguem com pequenas diferenças um texto que a Associação Socioprofissional da Polícia Marítima (ASPPM) lhe ofereceu (como poderia ter oferecido a qualquer outro que o tivesse solicitado), pela mão do então Presidente da Direção, Miguel Soares, com o qual tive a felicidade e o orgulho de colaborar intensamente. É fácil perceber que a lei orgânica da Polícia de Segurança Pública foi a principal fonte de inspiração do texto da ASPPM. Ele pode inspirar novo projeto de lei ou proposta de lei (da PM ou da Guarda Marítima); e pode ser que, desta vez, abra um debate substantivo e propicie a sua aprovação, com o empenho de todos os partidos.
Em várias ocasiões, defendi publicamente a criação da lei orgânica da PM. Esta proposta foi superada pelo policy paper no qual defendi uma reforma de fundo, que envolvia a criação da Guarda Marítima pela fusão da PM e da Unidade de Controlo Costeiro da Guarda Nacional Republicana.
Estou convencido que surgiu uma oportunidade única de tratar a matéria com profundidade e de modo duradouro, porque, pela primeira vez, está a dirigir o Ministério da Defesa Nacional alguém com conhecimento sobre a Autoridade Marítima (integrou o júri do doutoramento do autor em Políticas Públicas sobre a Autoridade Marítima) e tem sensibilidade política e técnica para a matéria, a Profª Helena Carreiras. Com a previsão de 4 anos pela frente, o Governo pode e deve avançar; não há desculpa para não o fazer.
Só uma iniciativa do Governo, e em especial da ministra da Defesa Nacional em articulação com os ministros da Administração Interna e do Mar, pode colocar a Autoridade Marítima na agenda política; levar jornalistas, académicos e atores políticos a olhar com atenção e profundidade para a matéria; e avançar de vez para dotar a PM da necessária lei orgânica; ou, melhor ainda, para fazer uma reforma que reúna os serviços da Autoridade Marítima e da Administração Marítima, e que crie a Guarda Marítima. E assim cumpra a Constituição, elimine redundâncias e realize poupanças, e torne eficazes as políticas marítimas.
Já basta de continuar a fazer de conta que não há problemas significativos com a PM, e ainda menos com a Autoridade Marítima.