No início de uma nova legislatura, com uma nova distribuição de mandatos no parlamento e um novo governo, é oportuno revisitar o problema da Autoridade Marítima, por resolver desde a 1ª Revisão Constitucional (1982). Há tempo e há condições políticas para fazer uma reforma que coloque o setor em conformidade com a Constituição e que o torne mais eficaz e mais económico para o país.

Esta reforma deve ter duas grandes vertentes: uma de natureza operacional e outra de natureza regulatória. No âmbito operacional, deve fundir-se a Polícia Marítima com a Unidade de Controlo Costeiro e Fronteiras da GNR para criar a Guarda Marítima, para operar só no mar e nos portos marítimos, com funções de fiscalização e polícia, e de salvamento marítimo e proteção ambiental. Os seus ativos vêm, por transferência, da Armada e da GNR, as quais deixam de ter missões e tarefas de Autoridade Marítima. No âmbito regulatório, relativo a todos os assuntos do mar, a Direção-Geral da Autoridade Marítima deve fundir-se com a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos para criar a Direção-Geral da Administração Marítima, cujos serviços desconcentrados serão as capitanias dos portos, em muito menor número do que hoje. A Autoridade Marítima Nacional deve ser extinta como órgão e passar a ser só uma função, de autoridade nacional de navegação, que, com a Autoridade Nacional da Pesca, a Autoridade Nacional de Imersão de Resíduos, a Autoridade Nacional de Controlo de Tráfego Marítimo e a Autoridade Competente para a Proteção do Transporte Marítimo e dos Portos, devem passar a ser funções do novo diretor-geral da Administração Marítima.

Ao reunir serviços que têm funções sobrepostas ou quase, cada uma das vertentes da reforma permite aprofundar a especialização que resulta da clara divisão do trabalho e, por isso, obter significativas economias de escala. No Estado de Direito Democrático, a função militar pouco ou nada tem a ver com as funções regulatórias ou policiais da Autoridade Marítima; logo, não há economias de escala com a Armada.

Assim, e ao invés do que alguns dizem, o país não poupa com o modelo que os dirigentes da Armada desejam; e é falso que esta reforma obrigue a onerosos investimentos, ou à criação de mais marinhas ou “mini-marinhas” – só há que transferir ativos e recursos. De resto, os oficiais que tanto falam em economias de escala opõem-se à integração na saúde e no ensino militares, onde são óbvias as economias de escala. Nem defendem a integração de Portugal na Espanha, para explorar as óbvias economias de escala…

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Esta reforma não impede a exploração de economias de gama, por colaboração ou coordenação entre serviços públicos, por exemplo, pelo apoio logístico ou até operacional que a Armada pode e deve fornecer à Guarda Marítima. Esta reforma não exclui o duplo uso à portuguesa (“duplo uso” tem várias décadas e traduz o uso de recursos civis para fins militares, inverso do adotado cá por oficiais da Armada); podem e devem empregar-se recursos da Armada, e outros recursos militares (sobrantes face à sua missão militar) noutros setores, em apoio das respetivas autoridades, conforme admite a Constituição.

É pois compreensível que a GNR tente absorver a Polícia Marítima, para obter economias de escala da função policial marítima, dentro do modelo constitucional. Com o seu foco corporativista, os dirigentes da Armada deram um forte e persuasivo argumento a quem quer alargar as atribuições da GNR.

E é de corporativismo colocado acima do interesse nacional que se trata. Veja-se, por exemplo, a contradição entre as reiteradas proclamações sobre a importância do mar e como ele é um desígnio nacional, e o facto de os dirigentes da Armada nunca terem proposto o fim dos emolumentos pessoais nem uma redução substancial das taxas, as quais encarecem substancialmente as atividades marítimas. Esta reforma deve também reduzir estes custos de contexto e as desigualdades entre funcionários públicos neste setor. É ainda uma oportunidade para corrigir o erro histórico de nomear um exército, a Armada, com a designação de todo o setor, Marinha.

Esta reforma pode ser uma oportunidade para alguns partidos e os atores políticos em geral se redimirem pelos 40 anos de atraso na concretização do modelo constitucional. Mesmo tendo presente a escassez de políticos com mais do que uma noção superficial ou parcial do que são as atividades e as políticas marítimas, ou que não têm uma noção abrangente do setor e se guiam por folk concepts, é difícil perceber por que aceitaram que a política pública de Autoridade Marítima fosse conduzida por burocratas públicos, sem legitimidade democrática, com uma visão parcial, e focados em interesses especiais.

Como é possível que nunca tenham procurado conhecer as alegadas economias de escala? Como puderam ter sido indiferentes à desigualdade entre funcionários que recebem e que não recebem emolumentos? Como puderam não perceber que a Polícia Marítima tem muito mais afinidades (logo, potenciais economias de escala) com as outras forças de segurança do que com a Armada?

A invasão da Ucrânia pela Rússia torna esta reforma oportuna. O inevitável aumento do esforço militar ocidental vai exigir mais foco e menos dispersão, aos exércitos de terra, mar e ar. Tem sido tolerada a dispersão de atividades dos militares dos exércitos, por volatilidade ou ausência de ameaça. Mas, agora, os exércitos têm de alcançar muito elevada eficácia naquilo que é a sua missão tradicional e constitucional, e na qual são insubstituíveis. Cada um só deve fazer aquilo em que tem vantagem comparativa ou em que é insubstituível, sem se dispersar. Por isso, a reforma esquematizada é essencial para alcançar a mais eficiente e económica afetação de recursos escassos, que ofereça segurança e também bem-estar às populações, como é o dever constitucional do Estado.