A propósito da polémica suscitada por Identidade e Família, houve quem entendesse que essa obra colectiva se propunha defender a família tradicional. Ora uma tal proposta não só seria, necessariamente, anacrónica, mas também impossível de realizar, porque a dita família tradicional evoluiu ao longo do tempo e do espaço e, se tinha inegáveis virtudes, também implicava, até nas suas realizações mais perfeitas, algumas contradições, sobretudo no que respeita à igualdade entre os cônjuges e aos direitos das mulheres.

Se a família tradicional é, de facto, como qualquer realização humana, uma realidade não isenta de deficiências, o mesmo não se pode dizer da família natural, ou seja, daquela base da vida social que, por decorrer da natureza, não depende dos condicionalismos históricos. Mas a família natural não existe em estado puro: todas as suas concretizações históricas expressam as limitações próprias do tempo e do lugar.

Mas, o que é, afinal, a família natural? Nos termos do artigo 16.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a família é o “núcleo natural e fundamental da sociedade”. Para além das divergências ideológicas, culturais e religiosas, a família, enquanto célula-base da sociedade, é constituída pela união estável e aberta à vida, de um homem e uma mulher, ou seja, pelo matrimónio monogâmico.

Segundo o Papa Francisco, “só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto, ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplisticamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária, ou fechada à transmissão da vida, garante o futuro da sociedade” (Amoris Laetitia, n.º 52).

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Que seja indissolúvel quer dizer que não é rescindível pela vontade das partes. Mas, poder-se-ia perguntar, se a união matrimonial é voluntária, porque não admitir que a mesma vontade que a constituiu possa ser também apta para a dissolver?! Também a geração de um novo ser pode e deve ser um acto voluntário dos progenitores mas, uma vez gerado, os pais já não podem pôr termo à sua existência. A paternidade e a maternidade são opções voluntárias de que, contudo, ninguém se pode demitir, porque assim o exige o bem comum, ou seja, o bem da prole.

Que essa união torne “possível a fecundidade”, no expressivo dizer do Papa Francisco, quer dizer que deve ser estabelecida entre pessoas de diferente sexo. Uma união precária não é uma família, nem uma união naturalmente infecunda. A família nasce, portanto, da união estável e aberta à vida de duas pessoas capazes e livres. Só entre pessoas de diferente sexo é possível a geração humana, bem como a conjugalidade, que é a complementaridade do feminino e do masculino. Por isso, citando de novo o Santo Padre, “as uniões de facto, ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplisticamente equiparadas ao matrimónio.”

Assim sendo, o matrimónio, segundo D. Nuno Brás, Bispo do Funchal, é a “união estável e aberta à transmissão da vida entre um homem e uma mulher que, unidos pelo amor, manifestaram publicamente a sua vontade de construir esta comunidade-base da vida social” (Identidade e Família, pág. 115).

O casamento não é a única expressão do amor humano, pois também há relações afectivas entre pais e filhos, entre irmãos ou amigos, que não são, obviamente, conjugais. O que caracteriza o casamento não é, portanto, o amor – que é também comum a outras relações humanas –, mas aquela complementaridade conjugal que é princípio da vida: não em vão a palavra matrimónio procede de ‘mater’, ou seja, mãe. Por isso, tradicionalmente, a geração é o fim primário do matrimónio, enquanto a entreajuda entre os cônjuges é o seu fim secundário, precisamente porque não é o fim específico do casamento, pois pode também ser alcançado por outras uniões.

Que só possa haver geração por via da união sexual entre a mulher e o varão não decorre de nenhuma ideologia política, religiosa ou cultural, pois radica, na feliz expressão de Paulo Otero, “na própria natureza humana” (Identidade e Família, pág. 199). De facto, só “a união estável e aberta à transmissão da vida entre um homem e uma mulher” constitui o que, com propriedade, se pode designar como casamento natural. Esta definição é uma mera constatação de facto, essencial para a recta compreensão do conceito de matrimónio e, consequentemente, de família natural. Não é por acaso que a quase totalidade das uniões estáveis se estabelecem, no mundo inteiro, entre um homem e uma mulher.

A família natural funda-se na complementaridade dos sexos e na necessidade dessa união para que possa haver geração. É, portanto, constituída pelos cônjuges, pela sua descendência e afinidades: pais e filhos; avós, tios e primos; etc. Onde não haja verdadeiro casamento, ou parentesco, não pode haver, como é óbvio, família natural.

Respeite-se a liberdade de cada qual viver como e com quem se quiser, mas não à custa da família natural, nem equiparando esta realidade universal e intemporal a outros tipos de uniões que, por não terem fundamento na natureza humana, não podem ser juridicamente equacionadas nos mesmos termos. Segundo Paulo Otero, “as normas de uma qualquer Constituição que neguem (ou comportem um efeito análogo a negar) à família o estatuto de ‘núcleo natural e fundamental da sociedade’ padecem de inconstitucionalidade” (Identidade e Família, págs. 201-202).

Com certeza que não só podem coexistir outros tipos de uniões interpessoais, também passíveis de regulação e, até, de protecção legal, mas, para o Papa Francisco, “não podem ser simplisticamente equiparadas ao matrimónio”. É significativo que, na antiga Grécia e na Roma clássica, embora fossem socialmente aceites as uniões de pessoas do mesmo sexo e, até, a pedofilia, não se admitisse que tais uniões pudessem ser equiparadas ao casamento. A exigência de que a lei não equipare o que é distinto na realidade, não decorre de nenhum preconceito religioso, ou indevida intromissão confessional, mas da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na medida em que entende que a família é o “núcleo natural e fundamental da sociedade”. E nunca será demais recordar que a justiça não é a virtude que impõe a todos o mesmo, mas que trata por igual o que é idêntico, e diferentemente o que é diverso.

Desde há dois mil anos que a Igreja católica está na linha da frente deste combate pela dignidade humana, defendendo a unidade e indissolubilidade do casamento, que para os cristãos foi elevado à sublime condição de sacramento, e que é a base da família natural. Não separe, pois, o homem, o que Deus, pela natureza e pela graça, uniu (Mc 10, 9; Mt 19,6).