É verdade que a palavra eixo, embora inocente, não tem a melhor das reputações, porque recorda, de facto, o malfadado eixo da segunda Guerra Mundial. Também foi este o termo usado por um presidente dos Estados Unidos da América para se referir aos países que, segundo o seu entendimento, mais se opunham à paz mundial: o eixo do mal. Por sua vez, Ronald Reagan, numa famosa intervenção no parlamento português, teve a coragem de se referir aos pastorinhos de Fátima, provocando, certamente, um sorriso de troça nos graves semblantes dos mais laicos e anticlericais deputados lusitanos.

As aparições na Cova da Iria, em 1917, guardam uma misteriosa relação com a distante Rússia que, pouco depois dessas aparições, sofreu uma revolução que inaugurou um dos períodos mais dramáticos da sua história recente. Por esta razão muito particular, Fátima e a Rússia estão unidas por um ‘eixo mariano’.

Foi na terceira aparição, a 13 de Julho de 1917, que Maria disse: “Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia que se converterá e será concedido ao mundo algum tempo de paz” (Memórias da Irmã Lúcia, 8ª edição, Fátima 2000, I, p. 168).

A propósito desta enigmática mensagem, um dos primeiros historiadores de Fátima, o cónego francês C. Barthas, escreveu: “Quando da minha primeira entrevista com a Irmã Lúcia (1946), encontravam-se ainda textos do ‘segredo’ sem a palavra ‘Rússia’. Eis por que lhe perguntei se a Senhora tinha verdadeiramente empregado esta palavra. Ela afirmou-me ter ouvido bem: ‘A Rússia’, sem que, no entanto, soubesse o que representava esse nome” (C. Barthas, Fátima, Aster, Lisboa 1967, p. 80).

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Cai assim, por terra, qualquer tentativa de fazer dos pastorinhos agentes primários do mais reacionário anticomunismo porque, na sua inocência, ignoravam completamente o que fosse a Rússia. Também não podiam saber que, meses depois, em Novembro desse ano, dar-se-ia a chamada revolução de Outubro, que iria instaurar um regime totalitário que, efectivamente, espalhou pelo mundo, como predissera a visão, os “seus erros”, provocando mais de cem milhões de vítimas. Uma contabilidade que, por certo, não está concluída: há que acrescentar as actuais e futuras vítimas dos governos da China, de Cuba, da Venezuela e dos demais regimes marxistas-leninistas.

Em Julho de 1917, quatro meses antes da implantação da ditadura comunista na longínqua Rússia, não fazia sentido a referência à ‘conversão’ desse país e, por isso, houve quem supusesse o regresso desse país à Igreja católica, mil anos depois do grande cisma do oriente. Mas, tendo em conta os factos ocorridos na ex-URSS, depois da sua consagração, pelo Papa São João Paulo II, ao Imaculado Coração de Maria, a ‘conversão’ não pode ser entendida como o regresso à catolicidade da Igreja de Roma, mas à liberdade, não só política mas também religiosa. Com efeito, foi esta a ‘conversão’ que efectivamente aconteceu, quando nada a fazia prever ou supor.

As várias referências à Rússia e aos seus ‘erros’, que se iriam espalhar pelo mundo, também não fazem sentido se aplicadas à ortodoxia, que não consta que se tenha expandido, ao contrário da ideologia comunista, que foi disseminada por todo o mundo pelo imperialismo bolchevique. Foi, aliás, neste sentido que ocorreu a dita ‘conversão’ da Rússia, ou seja a sua profunda mudança social e política, que possibilitou a acção evangelizadora das Igrejas cristãs, nomeadamente a ortodoxa e a católica.

Em abono desta interpretação, tenha-se também em conta que não parece possível, nem desejável, a conversão, por assim dizer automática, de um país ou nação, porque esse processo há-de ser, necessariamente, pessoal e não colectivo ou nacional. Já lá vão os tempos de má-memória em que se determinava, por decreto do poder político, a conversão de todo o povo, embora nos regimes comunistas ainda hoje seja o Estado a impor a irreligiosidade obrigatória dos seus cidadãos.

Graças ao Concílio Vaticano II, muito se tem feito no sentido de uma sempre maior aproximação e compreensão entre as diversas confissões cristãs, nomeadamente as Igrejas católica e ortodoxa, que são irmãs pela fé que professam e porque são originárias de dois apóstolos irmãos: São Pedro, que foi o primeiro bispo de Roma; e Santo André, que a Igreja ortodoxa reconhece como seu fundador.

A ‘conversão’, não deve ser só dos ortodoxos, ou dos católicos, mas de ambos em ordem à unidade: o importante é sublinhar o que nos une, para que ambas Igrejas se reencontrem no comum legado e tradição cristã, que pacificamente partilharam durante o primeiro milénio da sua história bimilenar.

É neste contexto que se insere e reveste a maior importância a próxima visita a Fátima e a Lisboa do Metropolita ortodoxo Hilarion de Volokolamsk, a segunda individualidade da Igreja ortodoxa russa, chefiada pelo Patriarca Cirilo de Moscovo, com quem o Papa Francisco se encontrou, em 2016, em Havana, tendo ambos assinado uma declaração conjunta. O Metropolita Hilarion é doutorado pela universidade de Oxford, presidente do departamento das relações eclesiásticas exteriores do patriarcado de Moscovo e, nessa qualidade, interlocutor privilegiado para as relações com a Santa Sé.

Contrasta com o declínio da vivência cristã na Europa ocidental, a pujança da Igreja ortodoxa na Rússia, a que o Metropolita Hilarion se referiu, já este ano, numa entrevista ao ‘The Economist’. Alguns índices são suficientes para calibrar a importância deste renascimento espiritual: mais de mil novas igrejas, trinta mil novas paróquias, mais de mil novos mosteiros e cinquenta novas universidades ortodoxas!

A iminente visita a Fátima do Metropolita Hilarion de Volokolamsk, que proferirá uma conferência no próximo dia 19, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, é mais uma significativa expressão do ‘eixo mariano’.

Por obra e graça de Nossa Senhora de Fátima, Portugal, terra de Santa Maria, ficou espiritualmente unido à Rússia, no outro extremo da Europa. Estas duas nações, irmanadas na mesma devoção mariana, talvez sejam o instrumento de que a providência se quer agora servir para a realização da tão desejada união de católicos e ortodoxos, na mesma e única Igreja de Cristo.