Num artigo recente publicado aqui no Observador, Rodrigo Adão da Fonseca (RAF) escreve sobre as próximas eleições na Iniciativa Liberal (IL), e apresenta a tese muito sui s de que a IL “trouxe (..) uma balcanização do liberalismo, e a sua tribalização.” Não sendo a primeira vez que o RAF defende esta tese, é interessante ver se é válida. Mas antes, um pequeno desvio sobre as eleições na IL.

Não consigo perceber o desagrado e o fatalismo com que algumas pessoas vêem as eleições antecipadas para a Comissão Executiva da IL. Havendo discórdia sobre como continuar o sucesso da IL, o que tem de estranho que se peça aos membros, que são quem de direito, para debater e escolher ? É certo, ainda a procissão vai no adro e já temos visto alguns comportamentos pueris. Mas e depois ? As eleições no Estado Novo, organizadas com a precisão de um relógio suiço a todos os quatro anos, decorreram sempre com um elevado decoro e sentido de responsabilidade. Por outro lado, em democracia, tivemos cercos à Assembleia da República, ataques a sedes de partidos políticos, ataques a políticos, o Garcia Pereira e até o Darth Vader. Por entre outros tesourinhos deprimentes. Preferem o decoro eleitoral do Estado Novo ou a barafunda da democracia ? Nisto da democracia, as eleições são como o sexo, querem-se com bagunça e ruidosas q.b.

Se a esmagadora maioria dos membros da IL não for capaz de manter debates civilizados, criticar as ideias em vez das pessoas e respeitar as opiniões dos adversários, então a IL é composta por tudo menos por liberais. Antes uma “disputa fratricida e tribal”, como o RAF erradamente caracteriza as eleições na IL, que a beatífica unanimidade com que foi eleito o novo secretário-geral do PCP.

Voltado agora à tese do RAF, sumariamente diz que os partidos com ambições de poder não podem ser dogmáticos e que a criação da IL tornou o PS e o PSD menos liberais. Comecemos por este último ponto, nas palavras do próprio:

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“O relativo sucesso da IL trouxe, como eu receava, uma balcanização do liberalismo, e a sua tribalização. Hoje, partidos como o PSD ou o PS mostram menos abertura a ideias liberais do que o faziam no passado, estando as soluções ditas liberais encapsuladas num partido que hoje representa 8 deputados na Assembleia da República.”

Eu tenho sérias dúvidas de que o PSD ou o PS até 2017, data da fundação da IL, fossem lugares onde os liberais se sentissem em casa. Quais destes dois partidos, ao longo da sua história, seja no poder ou na oposição, lutou por instituições independentes do governo, pela redução do poder do Estado e pela primazia do indivíduo em decidir a sua vida? Nenhum dos dois. E o que é que os impede de o fazerem ? Nada, excepto claro as redes clientelares que tanto PS e PSD foram criando e de que dependem para sobreviver. A IL não ‘iliberalizou’ os partidos do arco do poder porque estes nunca foram liberais.

Em relação à outra metade da tese, de que os partidos de poder não podem ser dogmáticos. É certo que para ambicionar o poder, um partido tem que ser abrangente. E não está errado quando afirma que “as democracias liberais mais saudáveis são as que foram conseguindo dirimir as suas desejáveis diferenças no quadro do pluralismo e da tolerância, sendo a matriz liberal ou socialista muito mais um padrão ou uma tendência, e muito menos uma identidade marcada“.

Mas, mesmo assim, o argumento não colhe. Exagerando, para efeitos de argumentação, isto significa que um partido de poder não pode ter ideias, princípios ou linhas orientadoras. E sem estes, um partido só tem um objectivo: conquistar e manter o poder. Trocando por miúdos: o PS e o PSD desde os finais dos anos noventa. Que tão bons efeitos tem produzido. O mesmo país que já conseguiu fazer emigrar quase 3 milhões dos seus cidadãos é o mesmo que foi este ano eleito o melhor destino para nómadas digitais. Se a ironia pagasse a dívida pública, já teríamos um dos problemas do país resolvido.

O problema não é ter princípios e ideais, o problema é se esses princípios contribuem para uma democracia liberal saudável. Suponhamos que por absurdo a IL conseguia tornar Portugal numa ditadura do liberalismo. Teríamos um país onde o cidadão é rei e senhor e não um servo da gleba cujo único propósito é pagar tributo à corte em Lisboa. Estranha ditadura em que o poder está no lado do cidadão.

Por vezes com excessos, normais em debates políticos, a IL ataca furiosamente o Partido Socialista, porque este representa exactamente aquilo que o RAF afirma ser urgente combater: “estatismo, burocracia, impostos, inércia, clientelismo e corrupção.” Longe de mim de afirmar que a IL é composta por querubins angelicais que nunca tiveram um mau pensamento. Mas pode indicar qual foi o dirigente ou deputado da IL que quis ilegalizar partidos políticos, como fez a socialista e ex-candidata presidencial Ana Gomes em relação ao Chega? Ou qual foi o que sugeriu acabar com os sindicatos, como fez com sucesso o ministro Pedro Nuno Santos com o dos transportes de matérias perigosas? Com todos os seus defeitos e erros cometidos, a IL nunca pugnou pela censura nem de opiniões nem de ideologias. Parece-me ser esta a principal qualidade numa democracia saudável.

Argumentos à parte, a tese do RAF traz-me à memória o discurso da unidade sindical que o PCP quis impôr durante o PREC. Em suposto nome da defesa dos trabalhadores, estes não se poderiam dispersar por diferentes sindicatos pois isso iria enfraquecer o poder negocial dos trabalhadores. Com múltiplos sindicatos, o PCP argumentava que seria fácil aos patrões dividir para reinar. Faltou dizer que também seria difícil ao PCP controlar os trabalhadores dispersos por múltiplos sindicatos. Mutatis mutandis, a tese do RAF parece talhada para impedir que os liberais se organizem fora dos partidos do arco do poder. Sim, fora do PS, com e sem D, é mais difícil aos liberais influenciar o governo. Mas também é mais difícil a estes partidos ter os liberais sob controle.