A triste comédia que é o processo de voto do emigrante repete-se a cada acto eleitoral com a regularidade de um relógio suiço. Tão certo como um e um serem dois, quando se trata do voto dos portugueses no estrangeiro, é garantido que o governo português arranja forma de se envergonhar. A única surpresa este ano foi mesmo a dimensão, 80% dos votos no círculo da Europa foram anulados. Foi tão grave que as eleições tiveram mesmo que ser repetidas por ordem do Tribunal Constitucional.

Não me interessa fazer acusações, esse é um número de circo no qual PS e o PSD têm larga tradição. Durante a campanha trocam acusações, e depois vão repousar os glúteos em silêncio nos cadeirões de São Bento durante mais quatro anos. Tudo como dantes, quartel general em Abrantes.

Interessa-me sim perceber como podemos reparar a crónica sub-representação e participação eleitoral da diáspora. Se em 1976, nas primeiras legislativas livres, votaram mais de 80% dos eleitores no estrangeiro, em 2022 mais de 80% não se deu ao trabalho de fazer a cruzinha. Havendo vontade, como poderemos inverter esta situação ?

A solução mais simples seria pura e simplesmente acabar com os círculos da Europa e do Resto do Mundo, integrando os seus mais de 1.5 milhões de eleitores em círculos nacionais à escolha. Uma solução simples, mas puramente cosmética. O voto da diáspora passaria a estar escondido por entre o dos residentes, e se agora somos ignorados com esta solução passaríamos a estar invisíveis. O voto da diáspora portuguesa seria pouco mais do que uma formalidade. Tal qual o voto nas eleições do Estado Novo, perfeitamente inútil e inconsequente

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Uma outra solução seria implementar o voto electrónico. Pouparia-se em selos, em papel e nas vergonhas que o governo português passa sempre que tenta organizar o voto por correspondência. A ideia se funcionasse, um grande se, não é má. O diabo, como é hábito, está nos detalhes. Ora, garantir a segurança e a fiabilidade do voto electrónico não é simples. Basta ter em mente os que se passou recentemente com a Vodafone e o grupo Impresa para perceber que não é trivial garantir a segurança de uma rede informática. Mas vamos supor que vivíamos num mundo de fantasia em que o voto electrónico funcionava e que por magia, toda a diáspora votaria em massa. O que é que isso alterava ? Ri-go-ro-sa-me-nte nada. Nicles. A diáspora, com 1.5 milhões de eleitores, continua terrivelmente sub-representada, com apenas quatro deputados. Os mesmos que, por exemplo, elege Castelo Branco com 166 mil eleitores. Dez, dez vezes menos que a diáspora.

E como os quatro deputados da diáspora estão divididos por igual em dois círculos, o método de D’Hondt garante que apenas PS ou PSD têm hipóteses reais de eleger. O que aliás se vem verificando desde 1976, com a excepção de 1995 em o CDS se enganou e elegeu um deputado pelo círculo do Resto do Mundo.

Esgotadas as soluções fáceis e ineficazes, sobram as difíceis mas com capacidade de mudança. Visto que os portugueses cá fora estão absurdamente sub-representados, um primeiro passo seria aumentar o número de deputados nos círculos da diáspora. Mas aumentar para quanto ?

Nos círculos nacionais, o rácio é de aproximadamente um deputado por cada 44 mil eleitores. Se nos círculos da emigração este rácio fosse o dobro, mesmo assim teríamos pelo menos dez deputados pelo círculo da Europa e seis pelo Resto do Mundo. Trocando por miúdos, mesmo aceitando que o voto da diáspora valesse metade do de um residente, teríamos quatro vezes mais deputados do que temos actualmente. Havendo mais lugares em jogo, os partidos teriam um maior incentivo para conhecer a diáspora e concorrer por esses lugares. E os pequenos partidos teriam uma hipótese real de eleger.

Esta solução traria competitividade às eleições no estrangeiro, mas dificilmente será implementada. Não por manifesta incompetência do PS e PSD, que comprovadamente existe, mas porque os dezasseis deputados extra não podem ser acrescentados dado que a Constituição fixou no artigo 148, o número máximo de deputados em 230. A única opção seria retirar dezasseis deputados aos círculos nacionais, cujos eleitos naturalmente estão contra perder o seu lugar.

Felizmente existe uma solução alternativa, o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Um ilustre desconhecido do grande público em Portugal, este órgão pode ter no máximo 80 conselheiros, eleitos pela diáspora em círculos eleitorais correspondentes à rede consular portuguesa. No fundo, uma espécie de círculos uninominais mas só para os emigrantes, com os conselheiros do CCP refletindo assim a distribuição dos portugueses pelo mundo. Os conselheiros também não são remunerados, o que lhes permite a independência e a proximidade à diáspora que os deputados em Lisboa não possuem. É um absurdo não aproveitar melhor esta estrutura.

Infelizmente o CCP é olimpicamente ignorado pelos sucessivos governos, qualquer que seja a sua cor. E como se não bastasse, não têm quase apoio nenhum do Ministério dos Negócios Estrangeiros e portanto, a dedicação dos conselheiros compete com a sua vida privada e profissional. Assim temos que o caminho para a valorização do CCP começa necessariamente por dotá-lo de um secretariado técnico permanente que apoie os conselheiros. Esta estrutura permitiria-lhes serem mais eficazes na ajuda aos problemas sentidos pelos portugueses no estrangeiro.

E para garantir que não continua a ser ignorado, ao CCP poderia ser dado o poder de veto construtivo em toda a legislação que afecte directamente a diáspora. Reunidas estas condições, o CCP tem as ferramentas para fazer muito mais pelos portugueses cá fora do que os deputados pela emigração eleitos pelo PS e PSD, que raramente votam contra o seu partido. E só são avistados durante as duas semanas que dura a campanha eleitoral.

Se não queremos daqui a quatro anos voltar a falhar aos portugueses cá fora, é agora o momento de reflectir sobre a melhor forma de os representar e ouvir. Ideias não faltam, haja vontade de as discutir e implementar.