Agosto termina e, daqui e dali, metemos a vida no saco e enfiamo-nos num transporte qualquer de regresso à realidade. A estrada é o que é e há muito não inspira literatura, mas estações de comboios e aeroportos caíram, última e vertiginosamente, de lugares cinematográficos a expositores concentrados do pior que temos para apresentar enquanto espécie. Dirá que, na melhor das hipóteses, é saudosismo do cronista; na pior, superficialidade. Talvez, mas receio que não. A forma como nos apresentamos nunca é apenas a forma; para os filósofos antigos, era a forma que concedia a essência à matéria. Mas, se preferir uma reflexão mais prosaica, fiquemos por esta: se é assim que nos comportamos em público, imagine em privado.
Em tempos, as pessoas vestiam-se para viajar. De forma especial, digo. Tal como se vestiam para ir ao teatro, os católicos para a missa, os netos para o almoço de família. Havia a “roupa de domingo”, que agora lembramos com um sorriso entre a ternura e a troça. Hoje, cheirará a mofo, mas evoca tempos economicamente mais difíceis, em que era preciso poupar o casaco bom e os sapatos, e ir ao estrangeiro ainda não se tornara mais banal do que, sei lá, ao supracitado teatro.
As coisas mudam e malfeito seria se não o fizessem. Mas não precisávamos de ter caído para o ponto em que nos passeamos por estações e aeroportos com almofadas de pescoço por coleira ou cachecol (custava mesmo muito levá-las num saquinho na mão e colocá-las só quando fosse preciso?). Não se trata de termos deixado de nos preocupar com a aparência porque essa, como sabemos, nunca esteve tão em alta; trata-se de entendermos o momento da viagem como uma suspensão momentânea da realidade em que nos estamos nas tintas para o próximo. Homens e mulheres adultos viajam de fato de treino ou calção, quantas vezes a deverem muitas actualizações aos respectivos perímetros abdominais, e como quem está a duas viagens low-cost de começar a fazê-lo em pijama. Atropelam-nas filas para o check-in, o raio-x ou o embarque, bocejando, esgravatando o nariz, tossindo ou espirrando para cima do cidadão incauto mais próximo, indiferentes ao que possa pensar sobre eles já que, em princípio, ali a seguir ao Duty Free, nunca mais os verão na vida.
A única preocupação é passar à frente, não perder o respectivo comboio ou avião, nem o lugar, previamente marcado à janela ou não, onde dentro em pouco disputarão, ferozmente, com o passageiro do lado o direito à ocupação exclusiva do apoio para o braço. Durante todo o tempo, têm geralmente os olhos enfiados nos smartphones em scrolls infinitos, perdidos nas vidas que talvez gostassem de ter, seguindo pessoas com quem têm a ilusão de estarem a interagir, atrás das suas fotografias de perfil devidamente maquilhadas, filtradas, sorridentes, cheias de pretensa alegria de viver e paixão pela espécie – e sem almofadas de pescoço. Durante a viagem, hão-de fechar a persiana sem perguntar à restante fila se se importa, adormecer e babar-se para cima dela, enquanto esperam que tudo acabe depressa. No fim, correrão para tirar a mala e pelo direito inalienável a serem os primeiros a saírem da composição, furando pela multidão como jogadores de rugby famintos, atrasados para a ceia de Natal.
Exagero? Pormenor circunstancial? Espero que tenha razão. Mas, assim de repente, diria que é o mesmo comportamento que observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo que os tempos da pandemia apenas parecem ter acelerado.
Vivemos metidos nos nossos telemóveis, fechados de headphones nos ouvidos, trabalhamos em casa, mandamos entregar a nossa comida à porta. Amanhã, pode haver outra praga, outro confinamento, uma guerra ainda mais próxima, alterações climáticas ainda mais drásticas. Então, açambarcamos. Do apoio para o braço ao papel higiénico. Tratamos de nós porque já não confiamos nas instituições para isso. Vivemos fechados na bolha das nossas redes sociais e avatares, convencidos da nossa importância no mundo ou revoltados contra ele pela terrível injustiça de tanto tardar em no-la reconhecer. Os nossos candidatos a líderes políticos são o exemplo acabado do colapso das boas maneiras: ser rude, grosseiro, ordinário, brejeiro, não só já não inspira vergonha; parece tomar-se agora por qualidade. Frontalidade, genuinidade, vir de fora do “sistema”.
Na sua superior crónica de ontem, Maria João Avillez recordava Sven-Goran Eriksson como um exemplo de decência e dignidade de um tempo que talvez já não exista. Muita gente lembrou assim o técnico sueco, um príncipe num universo, o futebol, onde a elegância é mais rara do que um pontapé-de-bicicleta. Eriksson foi mais do que isso, é claro; foi um vencedor em Portugal, Suécia, Itália, Inglaterra, e um dos técnicos que mais contribuiu para o avanço da modalidade nos anos 80 e 90. Mas a elegância bastaria.
Num tempo de tanta obsessão com o sucesso pessoal e profissional e exibição de vidas-troféu para pretensos “seguidores” que desprezaríamos na fila para o check-in do lado, não me importaria que um dia a lápide dissesse “aqui jaz um tipo que era bem-educado”. Quanto não diria da vida agora ali respeitosamente posta em sossego? Se a elegância e a gentileza são coisas de outro tempo, deixem-nos estar, orgulhosamente, fora de moda.