França é um hexágono ao alto, de dezenas de bandeiras cosidas entre si, que já compôs uma espécie de paraíso da liberdade nunca colhida pelo meu País. No meu País, aliás, das esquinas que já ameaçavam parir aquilo que só Abril pariu, costumava ouvir-se que “não era tanto o que Paris dá, mas sim o que Paris não tira”.
Paris, França, esse hexágono de deuses em capricho e vinhos de castas esdrúxulas, era uma espécie de mundo libertador de humanidades sempre por fundar. Ali, as inquietações rendiam-se a um horizonte que, destas, erguia uma eterna esperança de sorriso em riste. Se sempre foi assim? Talvez. Se sempre será assim? Desconfia-se da resposta que se crê perigosa. O que se sabe com certeza é que a polarização invadiu este país, sempre tão coberto por uma metafísica de alma e meia.
Em França, hoje, ergueu-se uma cerca quanto à qual, de um lado, se ouve “não votem naqueles tipos”, enquanto do outro lado, se escuta, num tom de pedras a voar rumo a quem antes gritava, “não votem é neles”. Os gritos, em colisão crescente, vão se ouvindo cada vez mais e quem sofre, no meio de um futuro sequestrado pelo caos social, é a própria cerca que pode ser chamada pelo único nome que realmente tem: Pessoas. As pessoas, apanhadas no meio dessa efervescente polarização e agitadas como uma cerca pressionada sempre só pode ser, sentem-se, exactamente, como apenas se podiam sentir: em profundo desencontro desesperado de interiores já não seus. Aquece-lhes o sangue enquanto aos olhos se lhes mostra um alvo fácil, de defesas baixas, sempre susceptível de ser atacado. Das pontas opostas da cerca, atiram-se mais incitamentos para que se vote sempre em consciência e para que se vote sempre no único rumo certo.
Pois. Que rumo será esse, o dito como certo? Para um lado da cerca, é claramente um. Para outro, é claramente o inverso. Sabe-se uma coisa: a cerca, de braços ao alto e pernas hirtas, escuta e, precisamente por escutar, reage, atiçada em prol de destinos de vida opostos, quanto aos quais, por um lado, o que interessa é o que interessa, enquanto, do lado oposto, o que não interessa é exactamente o que não interessa. Na verdade: uma confusão de gritos- em máquinas de vidas alheias tamboriladas por uma grave recessão interior. Todos oferecem a solução, todos atacam o oposto e nenhum faz o que todos deviam fazer: elevar o destino das pessoas, que desesperam e espumam pela consideração que sabem merecer e nunca têm. Mas os gritos, que assumem alegados interesses de gente em perpétua apneia de voz, insistem em dizer que muito importante será riscar, no sítio certo, duas linhas e consumar o mais sagrado: a cruz do voto.
Uma questão: que raio pode ser este apelo despido de futuro que se impõe às pessoas de ouvidos já em sangue? Um voto, sucintamente, consiste numa expressão de vontade em detrimento de uma escolha acompanhada de possibilidades negadas. Mas votar não pode ser tão só um favor do eleitorado, em formato de acto-resposta, quanto a um apelo desesperado de terceiros. Votar, e escolher em quem votar, tem de ser um acto oferecidamente ponderado, consciente, quanto a um programa político sério, discriminado, e não uma adesão quase tácita a uma súplica eleitoral exigida em grito de socorro provindo de cartazes rasgados a metades.
O que se quer dizer, sem rodeios: apelar ao voto, por si ou por interposta gente, sem compromissos palpáveis que demonstrem paixão real pelo futuro humano, é não levar as pessoas a sério, o que as fará, inevitavelmente, entregar o seu destino a quem melhor apele e não a quem mais nelas pense. França, que explicitamente anuncia aquilo que se expandirá Europa fora, anuncia, ainda mais, que inexiste melhor altura para o futuro da democracia. Evidentemente, é tempo de tornar o mundo democrático mais íntimo e próximo do eleitorado que desespera por, de uma vez, em lugar de monólogos políticos distantes, conseguir participar de uma domesticidade democrática dialogada entre todos. Transparência, proximidade e hospitalidade política, podem ser as premissas iniciais de uma democracia humanizada, a qual, por si própria, sobrepor-se-á tanto a qualquer radicalismo raivoso de meio tostão como às gravatas rame-rame, entaladas em domingos-já-nunca-segunda-feira que, com meia perna às costas, boicotam, em dupla, reiteradamente, a concretização existencial da espécie.
Outra questão: como concretizar a democracia? Simples: num primeiro momento, deslocar assembleias políticas, e actos dos respectivos executivos, para locais públicos, a acontecer em horário decente, que não aquele em que as pessoas não estejam mortas de cansaço, atiradas ao sofá eterno da consciência largada a um passado sempre esquecido; num segundo momento, promover o diálogo intercomunitário, por parte de instituições de natureza variada, aproximando-as de uma comunidade realmente a incluir; num terceiro momento, por parte do poder geral, serem tomadas decisões em conjunto com as pessoas, que se vêem cada vez mais dominadas por imposições kafkianas e cada vez menos livres para serem o que lhes tem sido reiteradamente vedado ser: humanos em concretização.
Aliás, entre estas três rápidas sugestões, o mais importante, e aquilo que está em causa tanto em França, actualmente, ou em toda a Europa, num dia que nos amanhece já aos pés, é isto: o acto difícil de se querer ser humano em tempos de total apostasia social. Em suma, os gritos provindos dos opostos da cerca crescem, as pessoas que a compõe diminuem-se, não vislumbrando o que mais possa haver de bom em manter uma existência humana que renuncie expressamente à barbárie social e o medo é o cenário que usurpa o desfecho do qual ainda podemos escapar. Aqui, precisamente, começa a salvação da democracia, ou de França, ou de Portugal, ou da Europa ou até da espécie: no encontro de um valor que se sobreponha aos gritos selvagens de uma vida sempre imposta por terceiros. Só a partir daí acontecerá o verdadeiro encontro do humano pelo humano, no seio do próprio humano, que passará a ser o que nunca foi: humano-humano.