Há muito tempo que não via tanta alegria na “frente republicana e antifascista” ressuscitada pela barragem ao Rassemblement National de Marine le Pen e Jordan Bardella. Ver, à hora da abertura das urnas, o núcleo duro do La France Insoumise, presidido pelo Robespierre tonitruante Jean-Luc Mélenchon, foi quase um comovente “ó tempo volta para trás”.

Ah o saudoso Maio de 68!… Eram quase as mesmas caras, o mesmo estilo, as mesmas palavras de ordem, a mesma rectidão de propósitos, a mesma superioridade moral, a mesma arrogância, a mesma intransigência em relação aos “infiéis” (que não os muçulmanos). Mélenchon não desiludiu. Nunca desilude. Depois de ter registado um profundo alívio por ter esmagado, mais uma vez, a incansável “besta fascista” que não pára de se agigantar, passou, de chofre, a atacar o aliado objectivo, o presidente Macron e o seu Centrão, com quem se envolvera num fogacho frentista cujo prazo acabava de expirar. Os verdadeiros extremistas são assim: o inimigo principal é o aliado objectivo da véspera ou o correligionário mais próximo que não está com eles.

A geringonça montada para a segunda volta para evitar o triunfo da “Extrema Direita” e o apocalipse que se lhe seguiria cumprira a sua função: para quê prolongar a agonia daquela efémera união de facto? E tudo resultara no que era uma aparente contradição democrática particularmente favorável aos frentistas: a coligação eleitoral mais votada (o Rassemblement e os Republicanos de Eric Ciotti), com mais de dez milhões de votos populares, ficara, com 143 deputados, atrás do Ensemble macroniano (com seis milhões de votos mas com 166 lugares no Parlamento) e da grande vencedora, a Nova Frente Popular e populista (Verdes, Comunistas, Socialistas e Insubmissos), que, com sete milhões de votos, somava agora 184 lugares. O que é que se podia querer mais?

Fogo fátuo

Porém, a euforia não duraria muito e não só se desfaria no rescaldo das eleições como entraria em combustão interna. Era natural. Para salvar a França e a Europa do “fascismo”, em múltiplos círculos eleitorais, liberais convictos tinham-se retirado e aconselhado os seus eleitores a votar em marxistas insubmissos, cujo programa económico prometia e garantia arruinar a França; ao contrário, houvera tardo-marxistas que também se tinham retirado e intimado os seus eleitores a votar em burgueses neoliberais macronianos, inimigos de classe e condenados a desaparecer nas lixeiras da História.

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Tudo isto se deu no Domingo à noite, com a alegria a propagar-se por toda a Europa, contagiando também os nossos contagiáveis analistas e comentadores. Ainda a saírem das comemorações de Abril – relativamente mornas apesar do esforço pedagógico e dos subsídios públicos para a festa – a maioria dos nossos noticiaristas aproveitou o momento para se integrar, com grande inclusividade, na festa republicana, havendo até quem não escondesse alguma ternura e contrariada compreensão pelos incendiários “festejos” de rua dos mais insubmissos.

No meio dos festejos, Marine Le Pen respondia na TF1: “A maré sobe. Desta vez, não foi suficientemente alta, mas vai continuar a subir. Em consequência, a nossa vitória só foi adiada.” E acrescentava que a sua longa experiência de derrotas a aconselhava a não desanimar perante semelhante resultado: afinal, o seu partido passava de 88 deputados para 143, ganhando 55 lugares, e contava com 37% do voto popular.

O que é certo é que o partido de Le Pen ficava, em deputados, em terceiro lugar, depois do Nouveau Front Populaire e do Ensemble, o novo nome da coligação centrista macroniana, que já fora La République en Marche, e que, com pouco mais de seis milhões de eleitores, conseguia 166 lugares.

Como Marine le Pen e Jordan Bardella sublinharam, o resultado só era explicável pelas votações cruzadas entre a Esquerda e a Extrema Esquerda (PS, Verdes, Comunistas, Insubmissos, todos na Nova Frente Popular) e o Centrão macroniano. Numa versão had hoc da reductio ad Hitlerum do adversário, os trotskistas radicais da França Insubmissa e os liberais-chiques da Macronia tinham reunido esforços para aplacar a maré de “extrema-direita” que prometia assolar a França.

Na semana em que se repetiam as projecções optimistas para o Rassemblement, dado até como possível candidato a uma maioria absoluta ou, pelo menos, a ser o primeiro partido, Marine Le Pen não tinha deixado de dizer que a alternativa a uma vitória da União Nacional seria ou “o pântano”, ou o caos.

O fantasma

Por pântano ou caos, Le Pen entendia precisamente a situação de ingovernabilidade que resultaria do desconjuntar da geringonça ideológica e política engendrada para enfrentar o “fantasma fascista”.

Fantasma porque nenhum dos partidos europeus a que a Esquerda chama fascistas tem, além do nacionalismo e do anti-esquerdismo, as características ideológicas dos fascismos europeus de há cem anos. Nem nenhum destes partidos, estando no poder, suprimiu as liberdades públicas ou a alternância democrática. Giorgia Meloni e os seus “pós-fascistas” Fratelli d’Italia estão no poder há dois anos em Itália e a oposição continua, ninguém restaurou o esquadrismo ou invadiu a Etiópia. Orbán ganhou a maioria nas eleições na Hungria e a oposição existe e a imprensa é livre. Na Polónia, o Justiça e Paz perdeu as eleições e cedeu o governo à geringonça Tusk do centrismo com o wokismo (que, essa sim, parece estar agora a suprimir liberdades e direitos).

A direita e as direitas nacionalistas, quer os velhos partidos reconvertidos – como os chefiados por Marine e Giorgia , quer os novos que surgiram na Europa (nos Países Baixos, na Suécia, na Áustria) – ganham adeptos e progridem porque as forças dominantes, nomeadamente as da direita dita conservadora, abandonaram os valores nacionais e identitários, reduzindo a política às questões da economia, da fiscalidade e da manutenção do poder, e tolerando ou até apoiando o globalismo e as propostas do wokismo e do fundamentalismo climático.

Claro está que numas eleições deste tipo, que são, no fundo, 577 micro-eleições em que, além do partido ou movimento político, contam muito a personalidade do candidato e o seu enraizamento no círculo eleitoral, o Rassemblement deveria ter tido mais cuidado com a escolha dos seus representantes. De resto, perante as gaffes e as afirmações inaceitáveis de alguns candidatos (como o que, para provar a sua ausência de preconceitos anti-semitas, invocou o dentista judeu a que recorria; e outra que, para mostrar o seu à vontade racial, mencionou a cabeleireira muçulmana), os dirigentes do Rassemblement parecem estar agora conscientes do desacerto de certas escolhas e prontos a aprender com os erros.

De qualquer forma, como salientam alguns analistas, nesta altura, uma vitória dos nacionalistas teria sido uma vitória pírrica: governar com Macron no Eliseu e a Esquerda Insubmissa na rua, aplicar um programa económico difícil sob o controlo do Presidente e contra a força da opinião publicada tinha tudo para ser um golpe decisivo na ascensão e progresso da chamada Extrema Direita.

E a avaliar pelo que a chamada Esquerda (a Esquerda Radical) fez na noite da vitória, podemos imaginar o que faria se tivesse perdido…

A carta

Como que para responder ao desafio de Mélenchon, que o convidara a abandonar o poder, Macron, de partida para a cimeira da NATO em Washington, deixou uma carta aberta “às francesas e aos franceses”, apelando à união dos republicanos. Mas só dos republicanos de bem, não os extremistas da União Nacional nem os da França Insubmissa: afinal, “os blocos e coligações” tinham saído das eleições “todos minoritários”, “Personne ne l’a emporté”, sublinhava o Presidente na carta.

Ora a missiva está a ser muito mal recebida – e não só pelos excluídos. Assim, o socialista Olivier Faure, secretário-geral do PS, reitera a urgência de o Presidente nomear um primeiro-ministro saído da Nova Frente Popular; o “excluído” Mélenchon vê na atitude de Macron “o regresso do veto real ao sufrágio universal” e a “verde” Marine Tondelier considera a recusa do Presidente em aceitar o resultado das urnas “um perigo para o país e para a democracia.” A estes juntam-se as vozes iradas de toda a Esquerda – insubmissa, verde, comunista ou socialista.

No outro extremo da exclusão macroniana, Bardella diz que Macron “organiza a paralisia do país” e Marine Le Pen fala de circo – e de um “circo indigno” – uma vez que o Presidente se prepara agora para excluir os mesmos deputados da Nova Frente Popular que acabou de ajudar a eleger.

E este é só o primeiro episódio do dramático feuilleton com que a França de Macron promete entreter o mundo. À suivre: segundo a última sondagem Odoxa-Backbone para Le Figaro, 73% dos franceses opõem-se a um governo composto exclusivamente por ministros do bloco das esquerdas.

 

Nota: Dada a volatilidade do número de deputados atribuídos pelas diversas fontes aos grandes grupos de Esquerda, Centro e Direita, resultante da consideração de sub-grupos, sigo aqui os resultados oficiais publicados pelo Ministério do Interior francês.