Há um encontro em particular que me fica na memória. Dos múltiplos que teve nestes dias e de que poderíamos falar, digo. Foi numa daquelas tardes em que o Parque Eduardo VII pareceu mais cheio do que em dia de título do Benfica, autógrafos da Cristina Ferreira na Feira do Livro e piquenicão do Continente juntos. O Papa vai a passar entre a multidão e alguém ergue em braços, numa cadeira de rodas com o símbolo do Capitão América, um menino sorridente que o Papa abençoa.

Nada sei daquela criança e uma breve pesquisa pelas notícias daqueles dias não ajuda. Como se chamará, de onde vem, como ficou numa cadeira de rodas, se é condição temporária ou crónica, exclusivamente motora ou mais do que isso. Mas qualquer coisa naquele encontro entre o Capitão América e o Papa tornou o instante irresistivelmente comovente.

Mesmo para não crentes, como o cronista, nem nas forças de uma transcendência cristã nem de uma imanência da Marvel, a contemplação de um acto de fé é sempre algo de extraordinário.

Em duas gerações, passámos de país fervorosamente católico a fundamentalmente descomprometido. Os oragos locais e o culto das respetivas relíquias que, durante séculos, ajudou a delimitar as fronteiras e a identidade do país e de cada região não serão hoje muito mais do que designações toponímicas e leitmotiv de festas populares. Mas, se antes rezávamos a todos os santinhos e anjos-da-guarda, cada um com o seu departamento e habilidade, convocávamos todas as forças que pudessem interceder por nós para além da realidade mais imediata, porque não poderíamos hoje chamar também os super-heróis da BD e do cinema aos exércitos que ajudem uma criança a acreditar que pode superar os obstáculos que a vida lhe deitou ao caminho?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não sei o que pensa o Papa Francisco dos Avengers, nem se a origin story do Capitão América casa ou não bem com a doutrina social da Igreja (faltam-me estudos marvelianos para isso). Mas, naquele instante, assistido através da televisão, o brilho de algo mais do que a estrita esfera material reluziu daquele fugaz encontro um palmo acima dos milhares de cabeças da multidão presente no Parque Eduardo VII.

Pouco depois, na mesma peça noticiosa, Francisco perguntava à plateia de jovens, num daqueles momentos em que já tinha abandonado os papéis e começado a improvisar, se, às vezes, alguma coisa as fazia chorar, se se recordavam da última vez que tinham chorado. Suponho que estivesse a apelar a uma sensibilidade, a uma capacidade de nos continuarmos a saber compadecer. Pois, a última vez que o cronista tinha chorado tinha sido precisamente ali, segundos antes, com aquela reunião mística de vontades de acreditar.

E então, pensei que não importa se há ou não Deus, se existem ou não super-heróis. Havia um pai a erguer em braços aquela cadeira de rodas do Capitão América que tinha, claramente, força sobre-humana. Ou talvez fosse a mãe, e então mais força sobre-humana tinha ainda. Ou talvez não fosse o pai nem a mãe e mais forças inexplicáveis vinham ainda do seu coração até aos ombros, aos braços, às mãos, para levantar aquela criança sobre a multidão e segurá-la como num andor para aquele pequeno encontro mágico.

Só depois me lembrei de que também este Papa se desloca muitas vezes de cadeira de rodas, e que não é por isso que não corre o mundo à frente de multidões de milhões.

Serve isto para dizer que, de vez em quando, podíamos todos tirar férias da descrença, do cinismo, do criticismo, e apreciar como é capaz de pequenos milagres a mera, extraordinária, humanidade.