Estamos a viver uma grande crise, qualquer que seja o termo de comparação histórica. É a maior e mais dura para várias gerações. Ninguém estava pronto para o que aconteceu. Os tempos que estamos a enfrentar não estavam nos planos. Por maior planeamento que exista, nos diferentes níveis de poder, ninguém estava pronto para uma pandemia global. É a globalização a demonstrar que, para lá de todos os ganhos evidentes que a humanidade tem tido, também existem consequências devastadoras.
As abordagens díspares em diferentes latitudes, os avanços e recuos, criaram dúvidas nas opiniões públicas e desconforto nos políticos. Não podemos negar que as reações perante o crescimento de infetados na China, e posteriormente em Itália, foram díspares e questionáveis. Ninguém gosta de conduzir de noite com os faróis desligados. Porém, é assim que é hoje pilotada a política mundial. É na ciência, apesar de tudo, que encontramos algum conforto. É nela que devemos encontrar o sustento para todas as decisões políticas. É a ciência que deve indicar a situação exata e perspetivar o futuro de uma pandemia destas dimensões. É a política que deve decidir, com base nos dados disponíveis pelos técnicos.
Porém, mesmo com todos os esforços que as diferentes autoridades estão a empreender, difícil nesta fase, podemos perceber que não estamos a reagir como deveríamos. Esta crise não permite mensagens dúbias, nem incertezas na sociedade. A dúvida instalada perante as melhores respostas a dar a este vírus são prejudiciais para o sucesso dessa resposta.
A gravidade desta crise é que, na verdade, ela é tão má que são duas.
A saúde pública, claro está. Mas também a económica. O mercado parou. São múltiplos os negócios adiados, congelados, cancelados. Ninguém está imune. Com maior ou menor poderio financeiro. Este vírus e as respostas dos países paralisaram as sociedades. Evidentemente que existem sectores a funcionar, mas as relações entre países, o comércio presencial e um sem número de atividades é hoje impossível de se realizar.
Não basta apontar o erro dos outros, com um espírito rebelde. É preciso construir um novo modelo de solidariedade europeia. É bom que seja entendido por todos que a Europa não se constrói com divisionismos, nem cada um por si.
Não sabemos como entrámos, mas é crucial saber como saímos desta crise. A saída só pode ser feita com transparência e com uma certa audácia realista. Não há espaço para politiquice ou ilusionismo da verdade. Não há espaço para o cinismo, para o egoísmo ou para o divisionismo. Mas há espaço para uma nova agenda. Há espaço para a coragem, para a solidariedade e para o sonho. A este propósito, bem esteve António Costa perante a futilidade contabilística do ministro holandês. Esteve muito bem. Aliás, estranhei não existirem vozes do centro-direita a elogiarem essas palavras. Mas é preciso mais. Não basta apontar o erro dos outros, com um espírito rebelde. É preciso construir um novo modelo de solidariedade europeia. É bom que seja entendido por todos que a Europa não se constrói com divisionismos, nem cada um por si. Não há os bons e os maus. Não há os irresponsáveis a Sul e os bem-comportados a Norte. Existem países com culturas distintas, mas existe hoje um mercado único, uma moeda única e livre circulação de pessoas, bens e serviços. É a construção de um projeto que ainda faz sentido, mas que precisa de liderança e não de egoísmos.
Este é um combate de todos. Não por acaso o slogan Todos por Todos faz todo o sentido. É por isso também importante referir que a União Europeia, de união tem tido pouco. É evidente que o conjunto de tecnocratas que lidera a Europa de hoje, falhou. Não conseguiram reinventar um sonho europeu de outrora. Não entenderam ainda a dimensão da crise que atravessamos. Não é de hoje. Não é apenas desta pandemia que se nota este falhanço do projeto europeu. Os sinais já vinham de trás. Mas é também no meio do caos que existem as oportunidades. O combate que os moderados na Europa e nos Estados Unidos da América estavam a perder para os extremistas e nacionalistas, tem aqui a última prova de fogo. Como se percebe, os nacionalismos e extremismos existem no medo, mas não são capazes de encontrar respostas para os problemas maiores. Não são capazes de fazer compromissos, de encontrar consensos, de harmonizar respostas, como temos comprovado nestas semanas. Um por um, apresentam más soluções, trapalhadas e guinadas de tomadas de decisão.
Quem salva a Europa? Quem assume de vez a necessidade de profundas reformas num espaço construído para ser de harmonia, partilha e sinónimo de oportunidades? A Europa está em causa. E é este o momento da verdade. Como podem certos países criticarem os movimentos populistas/nacionalistas e no momento da verdade pensarem mais nos próprios orçamentos e menos na solidariedade europeia?
Olhemos para o que fez a irlandesa Oasis. Há meia dúzia de semanas toda a sua produção de dispensadores de água dependia da China. Numa mudança operativa radical, em pouco tempo esta empresa já está a produzir a 100% com peças europeias, mantendo os preços.
Por tudo isto, precisamos de uma nova agenda. E para não ficar na retórica fácil aqui fica um contributo para essa nova agenda. Um roteiro para um mundo pós-COVID.
Primeiro passo: do “made by Europe” para o “made in Europe”. Relançar a economia europeia significará, inevitavelmente, um reforço do músculo industrial do nosso continente. A China foi, durante demasiado tempo, a fábrica do mundo criando severos desequilíbrios no processo da globalização. É obrigatório reduzir a nossa dependência de um modelo baseado no outsourcing de cadeias de valor vitais para as nossas economias. Olhemos, por exemplo, para o que fez a irlandesa Oasis. Há meia dúzia de semanas toda a sua produção de dispensadores de água dependia da China. Numa mudança operativa radical, em pouco tempo esta empresa já está a produzir a 100% com peças europeias, mantendo os preços. Um exemplo a seguir. Este mundo novo exigirá de nós algum nível de auto-suficiência no futuro. O desafio é garantir que isso é feito compatibilizando o mínimo de “autocracia” com valores liberais e espírito do comércio livre. Descorámos muito determinadas indústrias. O reforço do sector primário, criando cadeias de valor e tornando os diferentes países europeus mais auto-suficientes deve ser uma prioridade nos próximos anos. Fundamental criar uma “nova economia” a partir deste tsunami que enfrentamos. O chamado “decoupling“ das economias ocidentais das vertiginosas e alucinantes economias asiáticas, é o caminho a trilhar sem perder de vista as vantagens objetivas do processo de globalização.
Segundo passo: salvar a globalização dos seus males. Para que continue a ser aquilo que sempre foi nas últimas três décadas: o maior elevador social global. Contrariando todas as evidências empíricas, os extremos continuam a demonizar a globalização. À esquerda são incapazes de ver que as revoluções, a rua e a guilhotina só ergueram miséria na promessa do sonho; à direita, defendem paradoxalmente que é na nação arquipélago que encontramos respostas para o mundo de todos. Uns e outros estão cómica, e tragicamente, errados. Foi pela globalização que entrámos nisto. Só pela globalização podemos sair disto. Acredito que entrámos num acelerador histórico em que reforçaremos, em vez de debelar, os mecanismos de cooperação globais. O que me leva ao ponto seguinte.
Terceiro passo: a reforma das instituições multilaterais. Neste mundo que corre a gasolina aditivada, várias organizações provaram ser relíquias do tempo do comboio a vapor. A OMS, sobretudo, a UE e uma plêiade de talking-shops regionais. Podíamos simplesmente detonar estas construções. Mas isso não é uma opção. Porque os problemas do século XXI, como bem exemplifica a pandemia ou o aquecimento global ou a desigualdade, são por definição globais. Precisamos, mais do nunca, de uma “comunidade internacional”.
Só que ela não tem corpo nos edifícios atuais. Reformá-los não é uma opção: é uma obrigatoriedade.
Ainda há um ano procurei num artigo que escrevi “Do not stand still: A ten-step agenda for a euro zone reform”, abordar a necessidade de serem dados passos para uma nova agenda da Zona Euro. E lá estavam ideias como a mutualização da dívida, um reforço do orçamento europeu ou a harmonização fiscal no espaço europeu, entre outras soluções. Eram evidências há um ano, são uma extrema necessidade nos dias que correm, são hipóteses que temos de abordar sem dogmas. A Europa não pode falhar. Porque se a Europa falhar, não é apenas um mercado que se fecha. Para países como Portugal, uma demissão da Europa equivaleria à perda da maior fonte de prosperidade que o país conheceu nos últimos dois séculos. Perder a Europa é assistir ao desligar do maior farol democrático que o nosso país alguma vez teve.
Ah, já agora, todos os democratas têm de saltar das trincheiras para que a recessão democrática não se acentue.
Quarto passo: repensar a organização social e económica em Portugal. Os portugueses trabalham muitas horas. Mas trabalham mal e ganham ainda pior. São menos produtivos do que os seus pares europeus e têm salários muito baixos. Há um claro problema de organização do trabalho que está no centro da nossa falta de competitividade global.
Em vez de nos movermos por número de horas trabalhadas, patrões e trabalhadores têm de começar a ser movidos a objetivos e tarefas concretizadas. Mais liberdade será sempre sinónimo de mais criatividade e mais prosperidade.
As crises são subidas íngremes de aprendizagem. Que esta sirva para colocarmos em prática as lições que estamos a aprender.
O teletrabalho, tantas vezes ignorado, é hoje uma realidade à distância da vontade das organizações. Uma realidade que permite compatibilizar vida familiar e vida laboral; que permite ser produtivo; que permite dedicar tempo à cultura e às artes, à autoaprendizagem e à criatividade; que permite reduzir a pegada de carbono e até os custos fixos das empresas. O que, em última análise, pode conduzir a melhores salários.
Em vez de nos movermos por número de horas trabalhadas, patrões e trabalhadores têm de começar a ser movidos a objetivos e tarefas concretizadas. Mais liberdade será sempre sinónimo de mais criatividade e mais prosperidade.
Os tempos pós-pandemia vão ser difíceis. Mas é decisivo que, a par de um inevitável processo de reajustamento da economia, emerja uma agenda de esperança e de mobilização. Para que a vida em Portugal não se resuma, uma vez mais, ao exíguo espaço de liberdade entre as aparições da austeridade.
Estamos a viver uma grande crise, qualquer que seja o termo de comparação. Porém, é a forma como saímos dela, e não como entrámos, que nos garantirá um lugar na história.