A obra-prima de George Orwell, 1984, voltou durante a pandemia a encher as estantes das livrarias nacionais. Mais de 70 anos após a sua primeira edição, voltou a ser um sucesso de vendas. Foi estranho, sem dúvida, talvez justificado pelas limitações à nossa circulação, ao confinamento e a um conjunto de regras que chocaram com os nossos hábitos e conceitos conquistados de liberdade.

Falo-vos de Orwell e de 1984, não por paralelismo às novas edições do Big Brother ou por qualquer relação com a sua apresentadora, Teresa Guilherme. Mas por uma questão bastante mais séria e que merece reflexão: a aprovação da “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital” que, com assumida hiperbolização, tem laivos a lembrar o orwelliano Ministério da Verdade.

A carta, com força de lei, tem sem dúvida muitos aspetos positivos. Destaco a taxa social de acesso à internet, cada vez mais um bem essencial na sociedade em que vivemos.

Porém, tem também um lado perverso. Com vista a combater a desinformação na internet, as famosas fake news, prevê um regime de regulação das mesmas. Mas como regular a verdade? O que é a verdade? Onde acaba a verdade e começa a opinião? E Quem define o que é verdade? A pergunta capital.

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Prevê-se a regulação, o Estado – quem mais? – atribuirá poderes de verificação de fiabilidade e de controlo de veracidade a terceiros. Alguém irá na dicotomia do preto e do branco, isentando-se da sua subjetividade, da sua moral e crenças, firmar isentamente o que é ou não verdadeiro? Não acredito.

Aprovada, sem escrutínio público e sem destaque mediático, escapando ao debate, protegida pelo ambiente hermético da Assembleia da República e dos partidos, inclusive do PSD, a Verdade foi legislada.

Numa época em que tantos debates infindáveis e improdutivos, como os das comissões de inquérito, têm longas honras de direto; em que os distintos parlamentares tentam amplificar ao máximo as suas perguntas, que tantas vezes, mais do que relevantes, são uma ode à forma, ao volume e à rispidez, não existiu a sensibilidade de realçar um tema com potencial tão transformador da nossa sociedade. Não existiu tempo para um simples post. Não existiu vontade para um curto tweet.

Nas democracias liberais, a verdade não é igual para todos e convém lembrar que quando o foi, num passado ainda não assim tão distante, o absolutismo dogmático acabou sempre na verdade da mentira.

Sou católico e engenheiro. Religião versus ciência, a secular oposição de verdades, dogmas contra axiomas. Mas hoje, mais do que num espírito de luzes, vivemos numa mentalidade de cinzentos e degradés onde a convivência destas tradicionais dicotomias é completamente compatível.

Foi esta a sociedade que, em liberdade, criámos e cultivámos. Uma sociedade em que o erro faz parte da descoberta, em que o assumido não é definitivo, em que a verdade de hoje não tem valor na eternidade.

A mentira existe, sem dúvida. As fake news, são uma realidade. Mas isso não justifica a nacionalização da verdade. A definição do certo ou do errado por qualquer entidade pública com valores supra-humanos é algo que assusta pela possibilidade de resvalo para aquilo que já todos imaginamos: censura.

Não será por mal, sabemos todos. Mas o excesso de proteção facilmente passará a barreira do cuidado para o controlo. E há mais, a verdade da informação já é atualmente fiscalizada, chama-se imprensa. E esta tem de ser valorizada, acarinhada e capitalizada.

Os posts ou os tweets não são fonte de verdade e é isso que tem de ser interiorizado e foco de educação. Se assim não for, ficaremos entre dois lados da mesma moeda. No sabor da desinformação ou da validação subjetiva e controlada da realidade.

E como nos ensinou Orwell e o seu Ministério da Verdade: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

Temos a certeza que queremos arriscar neste futuro que tanto relembra o nosso passado?

Big Brother is watching You.