O texto que escrevi, traçando um retrato da situação com os refugiados na Alemanha, e que foi publicado no Observador este domingo, está a tornar-se um caso curioso de agradar a gregos e troianos. Escrevi-o como reacção a quem acusava certos países de estarem em “deriva nazi”, porque me pareceu que não estavam na posse de todas as informações. Dou-me agora conta de que muitas pessoas treslêem o que relatei, para poderem confirmar aquilo que já defendiam antes: que a Europa tem de se proteger desta invasão que só traz problemas – ou, como alguém comentava no Observador: da “praga islâmica”.
Recapitulando o que se está a passar na Alemanha: acolher um milhão de pessoas num só ano não está a ser fácil. O aparelho de Estado não estava preparado, e não se pôde reajustar ao ritmo exigido pelos acontecimentos. Cada uma destas pessoas que chegam à Alemanha precisa, para além da satisfação urgente das necessidades básicas, de quem as acompanhe, as ouça, lhes explique com paciência e empatia a diferença entre a sua cultura e a cultura alemã, e precisa também de ocupação e perspectivas de futuro. Há movimentos de extrema-direita que se manifestam, por palavras e por actos violentos, contra a vinda dos refugiados. O discurso no espaço público está a degradar-se: num país que se orgulhava da sua cultura de debate, multiplicam-se opiniões emitidas não a partir do cérebro, mas das tripas. Para evitar a propagação de lixo no espaço público, alguns media online fecham as caixas de comentários nas notícias relativas aos refugiados, e o governo alemão fez diligências junto do Facebook para que persiga o discurso de ódio com o mesmo empenho com que persegue a nudez feminina.
Para os preocupados com “a praga islâmica”: sim, os ataques de Colónia aconteceram mesmo (embora os números tenham sido empolados, segundo revela agora a polícia). Sim, há alguns delinquentes entre esta imensa massa de refugiados. Sim, muitos deles vêm de um contexto cultural muito diferente do nosso. Sim, a maior parte deles são muçulmanos. Sim, dois terços deste milhão são homens.
Para os preocupados com a “deriva nazi” e a “sombra do Holocausto”: sim, há refugiados identificados com pulseira, para se ter a certeza de que é esse recém-chegado, e não outra pessoa qualquer, que recebe o auxílio humanitário mais básico enquanto espera para ser convenientemente registado. Sim, houve piscinas que vedaram temporariamente o acesso a todos os refugiados de sexo masculino. Sim, houve uma discoteca que aventou impedir a entrada a pessoas de certos grupos. Sim, há dois Estados a pensar em obrigar os refugiados a participar no pagamento das suas próprias despesas, tal como já se exige a cada alemão. Sim, houve uma responsável do partido “Alternativa para a Alemanha” que disse que a polícia devia atirar sobre os refugiados que tentam entrar no país, e que a seguir corrigiu “não se pode atirar sobre as crianças, mas pode-se atirar sobre as mulheres”.
Perante estes problemas tão variados e complexos, o que faz a Alemanha? Acolhe, e corrige os erros. Não se deixa confundir pelo acessório, e continua focada no essencial – que é ajudar quem chega, debater abertamente as questões, procurar um rumo que seja fiel aos seus princípios fundamentais, sempre consciente da responsabilidade que advém da memória histórica.
A crise dos refugiados está a revelar a maturidade e a grandeza deste país. Apesar das lutas dentro da coligação governamental, que enfraquecem a posição da chanceler, e dos movimentos de extrema-direita que aproveitam a crise dos refugiados para conquistar mais espaço, a Alemanha não vacila nas questões fundamentais. Os refugiados continuam a chegar, e a ser ajudados. Na sequência dos ataques de Colónia, o Governo não deixou margem para dúvidas de que esses delinquentes só serão repatriados se houver a certeza de que no país deles não os espera a morte ou a tortura, e uma parte importante da sociedade alemã deu sinais claros de saber distinguir muito bem entre refugiados e actos de violência sexual. Multiplicam-se os debates na televisão e nos jornais. Ainda ontem, na Anne Will, que é o talkshow mais importante do país, se falou do medo e da desconfiança provocados por incidentes como os que aconteceram em algumas discotecas e piscinas. Alertou-se para a tentação de generalizar, e para o erro inadmissível dos castigos colectivos. Foram sessenta minutos de bálsamo para os espíritos atormentados, no qual se deu visibilidade aos refugiados que procuram a Alemanha porque querem ter o orgulho de fazer parte de uma sociedade que admiram, se falou do combate impreterível a comportamentos abusivos e à criminalidade. Houve palavras de compreensão para erros cometidos pela parte alemã, sinal de um certo atarantamento devido ao ritmo e à dimensão dos problemas, e palavras de compreensão para a situação difícil de alguns homens jovens, que passam meses à espera, sem família e sem qualquer perspectiva ou ocupação. Foi referido o generoso contributo da população, sem o qual o país não conseguiria fazer tanto, e concluiu-se que a integração é possível, desde que haja vontade e as regras sejam claras para todos.
Não está a ser fácil. Nunca ninguém disse que seria fácil. Quando abriu as fronteiras para acolher essa multidão que atravessava a Europa em condições catastróficas, lembrando o êxodo que aqui teve lugar no fim da segunda guerra mundial, Angela Merkel avisou que o esforço de acolher e integrar estas pessoas seria um desígnio nacional para as próximas décadas. As suas palavras encontraram terreno fértil no coração e no sentido de decência de um grande número de alemães. Apesar das dificuldades, apesar dos erros e dos mal-entendidos de parte a parte, apesar do cansaço, há muitos alemães que não desistem de ajudar o mais que podem, e mais alemães ainda que, em vez de se entrincheirarem por medo do desconhecido e repudiarem liminarmente essas pessoas, estão abertos para as ir conhecer, para falar e aprender com elas, para criar laços de amizade e solidariedade.
O nosso maior inimigo não é a “invasão muçulmana” – é o medo. É impossível parar este fluxo de seres humanos que fogem à guerra, à insegurança e à fome. Não tenhamos dúvidas: não há fronteiras estanques – e o muro de Berlim foi disso prova. Não vale a pena gastar energias a tentar parar o imparável. Mais vale olhar para o problema de frente, tendo consciência das nossas forças e responsabilidades.
O que vejo na Alemanha é a consciência de se estar a viver um momento histórico, e a vontade de, desta vez, estar do lado certo da História. O trabalho de décadas de consciencialização da responsabilidade herdada do passado está a dar frutos, que se revelam nesta atitude de não ceder ao medo do desconhecido e de outras culturas. O cristianismo e o humanismo secular que inspiram esta sociedade aparecem a trabalhar de mãos dadas para construir um quotidiano e um futuro baseados nos valores que lhes são comuns. Há muitos milhões de alemães – os que se preocupam com os refugiados e se aproximam deles, os que arregaçam as mangas e trabalham – que têm uma enorme confiança na capacidade da Alemanha para acolher e integrar estas pessoas, que acreditam que a integração vai resultar e que os valores de que se orgulham sairão reforçados. E sabem que, se optarem por jogar à defesa e fugir às dificuldades, o primeiro perdedor vai ser a Alemanha.
Este é um daqueles momentos difíceis e raros em que está na mão de cada um de nós contribuir para que se caminhe numa direcção de que os nossos netos se possam orgulhar. É também um momento revelador do muito que está a mudar para melhor na nossa sociedade. Tempos novos, estes, que se mostram das formas mais inesperadas. Como aconteceu há algumas semanas no Parlamento, quando um deputado do partido Die Linke defendeu a chanceler, que estava a ser muito pressionada pela sua coligação para pôr fim à vinda de refugiados, e o fez com estas palavras:
“Pois tive fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber; fui estrangeiro, e vós me acolhestes.”
Helena Araújo é tradutora, autora do blogue Dois Dedos de Conversa e residente em Berlim