Desde os anos 80 do século passado, com os gladiadores distraídos na arena de Bissau, cada qual com um olho na algibeira e outro no inimigo, que os habitantes do arquipélago dos Bijagós foram abandonados à sua sorte e à compaixão das ONG’s.

E agora que Bissau está minguada, que até a confraria dos abutres já declinou o possível convite para as exéquias eventuais por morte que ainda não aconteceu, os senhores de Bissau querem fazer-se ao mar para pôr mão nas ainda intactas, imaculadas ilhas, onde mulheres e homens vivem em harmonia secular com a natureza. O argumento, dizem os promotores desta agenda perigosa, é porque o Estado não dá a devida atenção aos habitantes das ilhas. As outras regiões bem poderiam, igualmente, e com a mesma legitimidade, invocar o abandono a que foram votados pelo governo da capital. E não é que Bissau, eldorado ilusório para as populações do interior, nade num mar de rosas, servindo tão só de entreposto para operações de enriquecimento dos políticos da nossa praça. A capital guineense foi, ela também, deixada à sua sorte e só lhe sobra compaixão do poeta:

Outrora apelidada de limpa e bonita,
Tuas avenidas aperaltadas despertavam ciúme!
Adornavam-te lindos jardins e gente distinta.
Na dança trepidante das estações, cheiravas a perfume.
 
Os afagos de mãos calejadas que te punham a luzir,
A toda a hora namoravam-te de orgulho inflamado.
Progresso e tradição em desenvoltura no chão afamado,
O rufar das chuvas e o sopro do cunfentú: motivos para sorrir!
 
E quem te viu formosa hoje pergunta quem tu és!
Não se percebe onde começam e onde acabam as tuas viés.
Perdeste o norte e tomaram-te a cintura como baldio.
Desonrada, mais te assemelhas a uma casa de vadios!
 
Construções inestéticas erguidas por todo o lado,
Extinguiram-se das tuas vistas tapadinhas e quintais.
E com a cara do lixo estampada nos cartões postais,
Passaste de limpa e bela, a lugar pouco recomendado.

Se a descentralização – levar as funções essenciais do Estado para junto das populações – é uma urgência nacional e um tema que reúne consensos na sociedade guineense, a sua implementação não deve ser feita à socapa. Numa sociedade onde clivagens existentes foram exacerbadas pelas recentes disputas eleitorais, sendo prioritário restaurar e consolidar a tão preciosa coesão interna, uma Conferência dos Bijagós – dividir para reinar não é bem-vinda. Partiu-se, claramente, duma premissa errada para a nossa realidade. As questões autonómicas são deveras sensíveis, com uma linha ténue que vai de paixões exacerbadas que dão em casamento e o seu esfriar conflituoso que leva ao divórcio. Infindáveis exemplos (Espanha, Reino Unido, Bélgica, etc.) de países consolidados, sem grandes questões étnico-religiosas, que se vêem assoberbados nos tempos recentes com derivas independentistas dos seus territórios, mesmo com o garante da indivisibilidade plasmado nas constituições. O que é verdade hoje, amanhã pode ser mentira! A autodeterminação dos territórios e dos povos é uma questão de vontades e de interesses vários, pelo que, mais vale não abrirmos demasiado os flancos para não sermos ultrapassados na curva das boas intenções. Há, claramente, um processo de colonização em curso da parte dos nossos vizinhos, com o já efectivo controlo da nossa economia (quem controla os números, controla a narrativa e os caminhos a seguir!) e a consequente conquista territorial que lhe segue acoplada. Quem ainda não acordou para esta assustadora realidade, deve despertar o quanto antes, porque amanhã já vai tarde.

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A região de Bolama-Bijagós, que em 2009 o The New York Times apelidou de “Um paraíso tranquilo numa terra conturbada”, é um arquipélago que compreende 88 ilhas e ilhéus, sendo apenas 20 habitadas de forma permanente. E goza, desde 1996, de estatuto de Reserva da Biosfera da UNESCO, a mais importante da África Ocidental. Em 2013, o Comité do Património Mundial decidiu adiar a decisão de incluir a pérola do chão da Guiné na lista de património natural e cultural da humanidade, porque o dossiê de candidatura não cumpria, entre outros, o critério cultural, não demonstrando o valor universal excepcional do arquipélago. Tal facto põe a nu o apanágio das elites políticas de tratar coisas sérias com amadorismo grosseiro. Com tantos estudos científicos nacionais e internacionais disponíveis, testemunhos de anciãos e actores no terreno, que exaltam a singularidade da cultura bijagó, o mínimo exigível era conceber um dossiê de betão.

Se salta à vista que o caminho a seguir não é embarcar numa aventura inglória de construir a casa Guiné começando pelo telhado, o que motiva esses senhores que figuram da galeria dos desavindos com a ideia do progresso na Guiné nas últimas quatro décadas? Serão interesses inconfessos, os patrocinadores dessa iniciativa? Quererão fazer dos Bijagós as Ilhas Maldivas? Como se concebe que um Estado confira autonomia a uma região, sendo ele próprio não autónomo e incapaz de cumprir as suas funções mais básicas, tais como prover saúde, educação, justiça aos cidadãos, vigiar a sua zona costeira, afirmar a sua soberania territorial (as nossas fronteiras são queijo para facas afiadas dos países vizinhos)?

E não devemos ser ingénuos ao ponto de assumir que, com este tipo de iniciativas, os povos das nossas ilhas não terão o mesmo destino que os Massai no leste de África, onde são perseguidos para longe das suas terras ancestrais, para gáudio de turistas mimados que preferem contemplar as maravilhas do ecossistema sem a presença de um dos seus elementos, os autóctones.

Importa, igualmente, questionar o actual governo sobre o regime jurídico sda propriedade fundiária no arquipélago: é, ou não, o Estado proprietário dos terrenos? E os terrenos ocupados por unidades hoteleiras foram concessionados ou vendidos a privados?

Enquanto não se aposta – de que estão à espera? – num modelo de desenvolvimento assente na criação de valor, de riqueza e menos na mendicidade, o Estado pode utilizar de forma inteligente os parcos recursos disponíveis para acudir às necessidades mais prementes dos cerca de 35 mil habitantes do arquipélago. Desde já, criar um fundo de insularidade, cujo valor deve corresponder a uma percentagem da compensação financeira dos acordos de pesca – da União Europeia, o país recebe um total de 15,6 milhões de euros anuais. Este valor, a constar da Lei do Orçamento Geral do Estado, poderia ser aplicado nos sectores da saúde, educação, economia do mar e transportes – melhorar as ligações marítimas e adquirir aeronaves (em parceria com uma empresa especializada) para transportes urgentes, nomeadamente, emergências médicas.

Voltando à vaca fria, a descentralização é o caminho a seguir. A própria Constituição da República consagra o seu Capítulo VI ao Poder Local. No entanto, a classe política andou tão distraída nas lutas recorrentes para aceder ao pote de mel, que não se deu ao necessário labor de legislar sobre a organização das autarquias locais, limitando-se a nomear, mediante o expediente jobs for the boys, governadores de região e administradores de sector como meras figuras decorativas da administração pública.

O que propomos é organizar “Conferências sobre autarquias locais na Guiné-Bissau”, abertas a todos e com subísdios de especialistas e de alguns municípios de África e Europa. Identificados os modelos passíveis de serem adoptados, deve, numa primeira fase, lançar-se o projecto piloto – por exemplo, numa cidade de cada região –  com apoios em meios técnicos e humanos no âmbito das geminações com outras cidades do mundo com gestão autárquica avançada, e também com transferências financeiras da administração central. Findo o projecto piloto, deve finalizar-se o regime jurídico das autarquias locais que define a sua forma de organização, quadro de competências e atribuições. O país ficaria, assim, bem preparado para organizar as eleições autárquicas.