Foi no dia 26 de junho de 1997 que se publicou a primeira obra de uma das sagas mais icónicas da literatura. Harry Potter e a Pedra Filosofal comemora 25 anos e a sua narrativa está muito longe de ser catalogada apenas como uma história de fantasia. De facto, muitos foram os críticos que descobriram na escrita de J. K. Rowling uma natureza profunda e rica em referências históricas e mitológicas.

Quando tomei contacto com as aventuras do “rapaz que sobreviveu” tinha apenas dez anos de idade, sendo encaminhado por todo aquele universo misterioso e recordatório de outras eras. No momento em que li as primeiras linhas desta epopeia, eu não sabia que estava a embarcar numa viagem de comboio pelas tradições medievais europeias.

Harry brincava com um cavaleiro no seu quarto debaixo das escadas, essa representação em tudo se assemelha à imagem que temos de um guerreiro medievo. Poderia ser um presságio para a aventura que se iniciava. Como num romance de cavalaria seguimos os passos de um mestre de armas até à sua consagração.

O espaço que o herói ocupa no novo mundo que o recebe é em tudo caracterizado por lugares que nos são familiares na nossa História. A Escola de Bruxaria e Feitiçaria de Hogwarts foi construída na Escócia no século X e conserva-se nos estilos Românico e Gótico, com todos os seus cambiantes, eco de monumentos como as catedrais britânicas ou os palácios franceses dos séculos XII ao XV. Os seus quatro fundadores destacam-se pela simbologia que empregam em cada equipa da Escola, representando os diferentes quadrantes da sociedade medieval: cavaleiros; governantes; nobres de toga; e clérigos.

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Godric Gryffindor defendeu os valores da coragem, da bravura e do cavalheirismo, tudo atributos que eram exigidos ao guerreiro com nobreza de espírito, como nos vem descrito na tratadística cavaleiresca. O leão está no centro do brasão dos Gryffindor, que heraldicamente é sinónimo de nobreza, coragem e força. A cor encarnada que está patente no brasão também significa força e magnanimidade. A espada é a relíquia que pertencia a Godric, uma arma que só pode ser empunhada por aquele que for digno de pertencer a esta equipa (Harry Potter e Neville Longbottom), tal como o mito da Excalibur. Sir Nicholas de Mimsy-Porpington (ou Nick Quase Sem Cabeça, como é mais conhecido), o fantasma dos Gryffindor que viveu no século XV, também é um cavaleiro.

Salazar Slytherin promoveu a ambição, a liderança e a astúcia, qualidades inerentes aos reis e senhores feudais. O brasão contempla uma serpente, animal representativo dos valores que acabámos de mencionar. Pela história desta casa, reparamos que grandes feiticeiros passaram por aqui, como é o caso do próprio Merlin, outra referência às lendas arturianas. O medalhão é o artefacto deste fundador, símbolo claro de poder, que acompanha os nobres desde o Império Romano. O fantasma dos Slytherin é o Barão Sangrento, aristocrata que viveu entre os séculos X e XI.

Rawena Ravenclaw, quando fundou a sua equipa, decidiu que fosse destinada aos mais inteligentes, estudiosos e sábios. A nobreza de toga que estava encarregue da política, do direito ou das artes assemelha-se muito aos alunos desta casa. A sala comum dos Ravenclaw era a única que possuía uma vasta biblioteca. O diadema da fundadora era a chave para toda a sabedoria. As primeiras universidades surgiram na Idade Média. A Universidade de Oxford é uma das mais antigas, tendo sido fundada no ano de 1096, um século depois do aparecimento de Hogwarts. Curiosamente, foi neste baluarte do ensino que se gravaram incontáveis cenas dos oito filmes baseados na obra literária aqui tratada.

Helga Hufflepuff tem como lema a lealdade, a justiça, a perseverança e a humildade. O artefacto de Helga é um cálice de ouro, que nos recorda a importância da partilha. O texugo, animal que serve de brasão a esta casa, simboliza a perseverança, a coragem e a proteção. O Frade Gordo, fantasma dos Hufflepuff, reúne todos estes atributos e dedicou a sua vida a ajudar o próximo, enquanto estava numa ordem mendicante. A sala comum desta equipa situa-se no corredor das cozinhas do castelo, e a entrada é feita através de um barril. O espaço está aberto a receber alunos provenientes de outras casas, ao contrário das restantes salas comuns.

Harry Potter foi selecionado para Gryffindor, pois a filosofia desta casa assenta perfeitamente nos atos do herói. No Livro da Ordem de Cavalaria, escrito por Ramon Llull nos finais do século XIII, vislumbramos uma definição de cavaleiro que em pouco difere do nosso herói escolhido: “Foi eleito e escolhido um homem mais amável, mais sábio, mais leal e mais forte, e com mais nobre ânimo, com mais ensinamentos e boa criação que todos os outros.” O nome completo do protagonista, Harry James Potter, cumpre a disposição habitual de um membro da nobreza medieval, com nome próprio, patronímico e apelido. Até os óculos que carrega são uma invenção do século XIII, objeto que, no seu início, era apenas usado pelos monges. O cavaleiro tinha uma ligação forte ao seu cavalo, como descreve o rei D. Duarte na obra Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela. Harry também teve de estabelecer um laço de confiança para ser aceite pelo hipogrifo Buckbeak.

O xadrez destacava-se como o jogo de tabuleiro mais praticado em Hogwarts, distração nascida na Índia, durante a Alta Idade Média, e implementada pelos árabes na Europa do século X, através da Península Ibérica.

O facto é que estas influências e paralelismos não foram esquecidos na música do compositor John Williams, responsável pela banda sonora das três primeiras adaptações ao cinema deste universo. A utilização de instrumentos oriundos da Idade Média foi uma das marcas patentes nestas composições. As músicas Hagrid The Professor e Double Trouble são dois desses exemplos, com uma orquestra que integra flautas e harpas, entre outros instrumentos mais tardios.

A saga que nos foi apresentada em 1997 é uma narrativa de cavalaria, como aquelas que Dom Quixote leu abundantemente. Sentimo-nos em casa ao ler os sete livros que relatam as façanhas e desventuras de um rapaz como nós, porque talvez seja o eco da nossa própria História.