Com o aparecimento da pandemia suscitada pelo SARS-CoV-2, por um lado, e com a operacionalização das tecnologias políticas entretanto mobilizadas para o seu governo, por outro, o carácter institucional da universidade, tal como o temos vindo a conhecer até ao presente, sofre hoje um golpe profundo e um enorme revés à escala global. Esta é uma realidade indesmentível, mas é também uma realidade complexa, digna, sem dúvida, de uma reflexão mais aprofundada e exaustiva do que aquela que aqui lhe podemos consagrar. Em todo o caso, pode-se afirmar, sem qualquer espécie de dúvida, que a primeira e a mais decisiva destas transformações está, evidentemente, ligada à experiência do chamado “ensino à distância”, tomado por alguns profissionais mais incautos (ou simplesmente carneiros) como uma simples modalidade de “teletrabalho” que a “crise sanitária” teria infelizmente imposto a alunos e professores.
Com efeito, a generalização cega e indiscriminada do “ensino à distância”, recentemente anunciada para o ano lectivo 2020-2021 por algumas universidades portuguesas, deve fazer-nos reflectir com alguma seriedade sobre a verdadeira natureza e o real impacto do ataque actualmente dirigido às fundações do modo de vida universitário tal como sempre o conhecemos. Por razões óbvias, é para já muito cedo para se fazerem balanços definitivos sobre os efeitos positivos e negativos do “ensino à distância” que o “estado de emergência” impôs à organização do ensino e da investigação fundamental em Portugal. Contudo, se reflectirmos no modo como a universidade se pensou a si mesma desde os seus primórdios e como ela existiu até ao presente, o mínimo que para já se pode dizer é que o “estado de emergência”, decretado para governar a pandemia, não tendo por ora um fim previsível à vista, está a abrir consideráveis brechas e perigosas fissuras nos seus pilares institucionais.
Evidentemente, ninguém com um módico de bom senso negará ou diminuirá hoje, e por maioria de razão no interior da própria academia, as extraordinárias possibilidades abertas pelas plataformas digitais e pelo e-learning, as quais, como, aliás, bem sabemos, existiam muito antes da eclosão da actual pandemia. O ponto, porém, está na completa falta de equilíbrio e de sentido de proporção dos que pretendem passar de uma situação em que o e-learning ocupa um lugar necessariamente complementar e auxiliar face ao “ensino presencial”, para uma situação em que o ensino e a investigação em plataformas digitais passarão a ser a regra e a norma na vida académica.
Muitas vezes declinadas à risível boleia de uma alegada frase de Winston Churchill, segundo a qual “um pessimista vê um obstáculo em toda a oportunidade, ao passo que um optimista vê uma oportunidade em cada obstáculo”… as propostas melhoristas dos adventistas da tecnologia, que vêem na pandemia uma “oportunidade de reforma” para as nossas universidades, são por ora um mero utopismo, porventura atraente, em todo o caso aqui e agora muito pouco realista e nada sensato. Na verdade, qualquer scholar profissionalmente experiente e com algum mundo no ensino e na investigação fundamental conhece perfeitamente as severas limitações inerentes a um modelo de ensino e de investigação feito exclusivamente ou tendencialmente sob modo digital.
Repita-se, portanto, o óbvio e o elementar: é inevitavelmente do corpo e do contacto físico entre professores e alunos que nasce essa forma de sociabilidade cívica esclarecida e intelectualmente superior a que chamamos universidade. A completa desterritorialização da universidade implicada no fetichismo tecnológico do “ensino à distância”, para além de esvaziar as “casas do saber” a que chamamos universidades, e de isolar uns dos outros os seus potenciais frequentadores, ignora uma lição didáctica elementar, a saber, que a transmissão do conhecimento científico exige corpos carnalmente expostos uns aos outros. Efectivamente, sem o envolvimento activo dos corpos de professores e estudantes no processo de ensino e de aprendizagem não se pode dizer que exista aquele feliz contágio da curiosidade e do espanto científicos que fizeram e fazem o dia-a-dia das universidades desde a sua fundação na Idade Média. Sem os corpos vivos e presenciais de uns e outros, não há, propriamente falando, nem mestres, nem discípulos, que constituem, afinal, a base material e o fundamento sólido da transmissão do conhecimento científico tal como este foi concebido e praticado desde o primeiro dia de vida das universidades europeias.
Tal como acontece na acepção originária do conceito grego de “crise”, a um só tempo médica e jurídica, pertence também à natureza da “crise universitária” em curso que uma decisão sobre o carácter do ensino e da investigação científica nela realizados esteja pendente, mas que esta ainda não tenha sido cabalmente tomada, permanecendo, por isso, numa relativa abertura. Sob esta perspectiva, não só podemos, como devemos abordar este momento crítico da universidade tomada como instituição universal fundamental, partindo de uma análise da organização do trabalho científico sob o actual imperativo tecnológico. Numa palavra, a completa digitalização da universidade, “oportunamente” induzida pela “crise sanitária” aberta pela pandemia do coronavírus, joga-se hoje num plano radicalmente novo.
Num registo mítico-literário, poder-se-ia talvez afirmar que o monstro tecnológico parido pela pandemia do coronavírus se dá hoje a ver como um novo Golem no qual toma lentamente forma uma potencial síntese do Big Data com a Biotecnologia e a Inteligência Artificial. O problema, com a “nova normalidade” do “ensino à distância” instaurado pela normalização do “estado de emergência”, é ela ser determinada, precisamente, por razões tecnológicas e financeiras exteriores à tradicional autonomia científica e pedagógica da universidade. Numa fórmula breve, é como se esta engenharia social tecnológica que cavalga a “crise sanitária” estivesse progressivamente a afastar e a separar os homens e as mulheres da universidade da experiência tradicional do trabalho, a qual, como sabemos, é a experiência, por excelência, da identidade moderna do indivíduo. Evidentemente, esta transformação profunda da natureza do trabalho sob determinação tecnológica traz com ela uma inevitável transformação no ensino e na investigação científica que se fazem nas universidades. Tal como as coisas agora se nos apresentam, num futuro que se adivinha não muito distante, todos, estudantes e professores universitários, serão, com forte probabilidade, “workers on-call” potencialmente “uberizados”.
Eis agora o quadro geral que nos permite dar uma nova figura à ascensão deste novo “Leviatão Tecnológico”. Ele pode, talvez, resumir-se a três pontos que consideramos cruciais no diagnóstico político que fazemos sobre o tempo que nos cabe viver:
- i) Colapso do liberalismo político tal como o conhecemos até aqui. Consequentemente, colapso também da democracia e da liberdade iluministas entendidas à maneira kantiana, isto é, como autonomia e livre decisão do homem. O “ousa saber” kantiano, o “ousa pensar pela tua própria cabeça para que possas sair da menoridade cívica da qual tu próprio és o principal culpado”, que o filósofo alemão elevou a emblema da razão iluminista, é já hoje uma mera reminiscência de um passado cada vez mais passado! Dir-se-ia, pois, que a cavalo sobre a pandemia do coronavírus ganha hoje uma nova consistência e actualidade o velho mito judaico do Golem, uma operação mágica assistida por um conselho de rabinos que dá vida a um homem de argila. Ora, o Golem, como sabemos, é uma alegoria, com diferentes versões e conclusões, é verdade, dos efeitos da substituição do homem pela máquina ou pelo robot. Em suma, o Golem digital induzido e favorecido pela actual pandemia dá-nos friamente a ver as consequências políticas da idolatria da máquina que chama a si a posição de Deus no governo dos homens, desumanizando, no sentido mais vital deste termo, a relação entre estudantes e professores, discípulos e mestres.
- ii) Progressiva convergência do tsunami dos dados, da Inteligência Artificial e dos filtros algorítmicos numa experiência digital tendencialmente sem corporeidade, com a consequente transformação virtual da subjectividade e da identidade humanas. Isto significa, antes de mais, uma expropriação do corpo (cada vez mais olhado, pelos adventistas da tecnologia, como um penduricalho analógico pecaminoso e defeituoso) e um completo desancoramento ou desacoplamento da base sensível corpórea da experiência do aprender. Com o “ensino à distância”, que agora se pretende elevar simultaneamente a forma necessária e a forma superior de ensino, alunos ou professores, não importa, todos são, uns para os outros, espectros e espectadores de espectros. Sob a nova condição tecnológica que a pandemia fez acelerar, a “espectralidade” de todo e qualquer trabalhador do chamado “capitalismo cognitivo” reside, precisamente, no facto de um corpo nunca estar hoje presente por si mesmo, isto é, presente por aquilo que ele é. Não. Este novo “corpo” tecnológico aparece desaparecendo, ou antes, aparece na medida apenas em que faz desaparecer aquilo que ele próprio representa. Como é fácil antecipar, esta progressiva, mas profunda desincorporação ou excarnação da experiência do ensino e da investigação científica ver-se-á necessariamente substituída pelos ecrãs e pela realidade aumentada. Aos olhos de um scholar com alguma idade e instrução, esta ruptura com o modo de vida universitário clássico afigura-se tanto mais perigosa quanto mais esse scholar se recorda de que a própria estrutura do direito natural moderno (pense-se em John Locke) tinha como base, precisamente, a primeiridade do corpo e a sua insuperável dignidade. É toda uma revolução em marcha. À sua pura instrumentalidade moderna a tecnologia acrescenta hoje uma dimensão radicalmente imersiva. E do mesmo modo que o legislador tradicional se vê hoje progressivamente substituído pelo algoritmo, e assim como a soberania é cada vez mais transferida para a gestão dos dados, também a tendencial absorção do “ensino presencial” pelo “ensino online ” é apresentada e publicitada como a força inaudita de uma autêntica lei histórica. “Fazer do mundo um lugar melhor graças à tecnologia”, repetem, completamente convictos de que será possível ao homem ser imortal, os nossos novos titãs da tecnologia.
iii) Sobresaturação de informação e tsunami de dados com a consequente delegação da decisão responsável nas máquinas. Sistemas de recolha e de tratamento de dados que, sob a coacção comportamental exercida pelos algoritmos, robotizam esse novo tipo de trabalhador envolvido no que alguns autores chamam o “capitalismo cognitivo”. Utopismo pós-humano dos gurus de Silicon Valley com o consequente aparecimento de uma humanidade algoritmicamente assistida na qual a capacidade de escolha e o poder de decisão dos indivíduos ficam entregues a máquinas que, ao contrário do homem de carne e osso, não ficam confundidas e paralisadas pela chuva torrencial de dados e “não hesitam” e “não erram” nas suas escolhas. Para avaliarmos a natureza do neoplatonismo (podemos designá-lo deste modo) que informa a mente destes gurus da “era do silício”, para os quais o corpo deve ser largado e abandonado em prol de uma pura consciência purificada da estupidez sensível, basta ler-se, da World Transhumanist Association, a famosa «Declaração a favor de um ser pós-humano, transcendental, abstracto, puro e liberto da ancoragem orgânica do corpo graças à tecnologia».
Com tantos dados despejados para cima da capacidade de escolha do professor e do estudante universitários, estes vêem-se agora aliviados, de uma vez por todas, da aterrorizadora responsabilidade de poderem escolher ou decidir mal quando o fazem sem assistência algorítmica. Uma das consequências previsíveis desta condenação e supressão do corpo como matriz da experiência da aprendizagem propriamente científica será o design de algoritmos com vista a uma desincorporação e a uma simulação cibernética das emoções. Se quisermos formular este problema numa perspectiva extrema, podemos afirmar que ocorre hoje com a transformação e a aceleração tecnológica induzidas pela pandemia do coronavírus aquilo que, segundo a filósofa alemã Hannah Arendt, ocorreu com os totalitarismos do século XX: «a abolição da liberdade e a eliminação da espontaneidade humana em geral». Com efeito, onde outrora se manifestava uma ideia humana de liberdade passará agora a vigorar apenas a lei férrea e pós-humana da necessidade. Em estranha homenagem a uma tradição filosófica pragmática e utilitarista que remonta a Jeremy Bentham, primeiro, e a Michel Foucault, depois, alguns chamam-lhe “panopticum digital”, uma nova “jaula de aço” activamente desejada pelos próprios cidadãos que a ele se expõem e submetem. À falta de melhor expressão para caracterizarmos o seu modus operandi, podemos chamar-lhe tirania ou rapacidade tecnológica. Esta implica uma exposição permanente e sem sombras do indivíduo, a qual redunda numa auto-exploração por auto-exposição e sobreiluminação. Por conseguinte, cada desvio comportamental do homo digitalis face aos comandos do automaton tecnológico entrará agora como débito na conta-coleira-electrónica de cada cidadão. Não é por isso estranho que o direito penal apareça aqui como o único fundamento possível de uns novos “direitos laborais” deduzidos de uma determinação tecnológica. Abaixo de uma certa pontuação atribuída pelo sistema informático de avaliação do desempenho no trabalho, o operário do “capitalismo cognitivo” será abandonado pela grande máquina tecnológica e entregue às consequências da sua incapacidade de sobreviver de acordo com as instruções que lhe são dadas. Não me parece desajustado descrever esta transferência da violência política física directa para a violência digital indirecta, como uma tecnologização integral da violência política.
Termino com um apelo consciente. Escutai, estudantes e professores: tomai todas as precauções médicas que considerardes necessárias e praticai com rigor, e mesmo com paixão, o chamado “distanciamento social”, mas regressai quanto antes aos vossos locais de trabalho, isto é, regressai fisicamente às instalações das vossas universidades, muitas delas edifícios de superior qualidade arquitectónica. Não deixeis os vossos estudantes sozinhos nos respectivas “salas” de trabalho.