Preâmbulo

Com a proximidade das eleições legislativas, marcadas para o próximo dia 10 de Março de 2024; com a enxurrada, nas duas últimas semanas, de debates televisivos diários entre os diferentes líderes partidários; mas sobretudo com os debates-sobre-os-debates travados nas televisões nacionais, envolvendo jornalistas, comentadores e especialistas em sondagens, é curioso reparar em como seria apenas uma questão de tempo até que o ambíguo e pletórico conceito de carisma viesse por fim ao de cima no debate público, como se este pedisse tempo para respirar e tempo para ser esgrimido sob os feéricos holofotes dos estúdios televisivos: “Como reconhecer o carisma e em que candidatos?”

Em tais circunstâncias, como começar por responder, de forma informada e com algum rigor científico, mas ainda assim com alguma graça, à pergunta: que é o carisma? Talvez devamos começar por contar a história da transposição da noção de carisma, originariamente limitada às torres de marfim da academia, para o mundo profano dos media. Tal aconteceu nos anos 40 do século passado, quando o reputado sociólogo Daniel Bell escreveu para a revista Fortune um artigo sobre o líder republicano do United Mine Workers, o principal sindicato mineiro norte-americano desde os anos 20. Apropriando-se de um termo tomado de empréstimo a Max Weber, que por sua vez o tomou do grande canonista alemão Rudolf Sohm, Bell usou esta palavra grega, charisma, no seu artigo. Porém, como o editor da Fortune desconhecesse o significado desta palavra estranha, pediu a Bell que a retirasse do texto com o argumento de ela ser uma palavra desconhecida do grande público. Todavia, como do próprio livro de estilo da revista constasse a possibilidade da introdução semanal de um termo novo impactante, capaz de agir sobre a mente dos leitores da Fortune, a palavra «carisma» acabou por ser aceite pelo editor e o texto de Bell foi por fim publicado com essa inusual palavra. Eis, num relâmpago, o início imprevisto da mediatização e vulgarização de um termo, carisma, originariamente confinado ao âmbito da teologia, mas que há um século atrás Max Weber transpôs – com um acolhimento que o próprio talvez não pudesse então suspeitar – para o domínio da política. Desde então, o sucesso de estima desta palavra não parou de crescer e de aumentar, ao ponto de hoje em dia a sua invocação na ordem mediática poder ressignificar quase tudo e quase nada ao mesmo tempo. Afinal, como caracterizar, numa definição comum e inequívoca, o “je-ne-sais-quoi”, ou a aura mística, feita de compulsão encantatória e de obediência emocional, associada à dominação política carismática?

Uma vivissecção consequente da noção de carisma exige que a dividamos em três partes, pois a evolução da elaboração weberiana do carisma conheceu duas determinações, uma teológica, em primeiro lugar, e outra política, a seguir, às quais se acrescenta hoje uma dimensão mediática.

1 Teologia

É na Ética protestante e espírito de capitalismo (1905) que Weber expõe, pela primera vez, os fundamentos anti-carismáticos e anti-autoritários, isto é, democráticos e republicanos, do puritanismo. Com efeito, na teologia calvinista a adoração excessiva e a veneração desmesurada da criatura são não apenas uma fonte permanente de erros e de ilusões, mas, aquém e além destes, um pecado grave do cristão. De igual modo, no puritanismo a adoração histérica dos chamados “grandes homens” e a crença na autoridade pessoal de um chefe dotado de faculdades supra-humanas caem sempre sob a suspeita – e, consequentemente, sob uma vigorosa e inapelável condenação – de «divinização da criatura» (Kreaturvergötterung), razão pela qual a submissão cega e incondicional à autoridade de um homem é pecaminosa e mina o dever do crente em obedecer exclusivamente a Deus e às escrituras.

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A primeira aproximação de Weber à noção de carisma nasce, portanto, do fascínio do sociólogo alemão com a verificação da sua radical negação na ascese puritana, a qual se constituiu como uma ascese anti-carismática e anti-autoritária fundada numa recusa veemente da divinização e idolatria da criatura. Quanto ao complexo conceito de «ascese intramundana» (Innerweltliche askese), que caracteriza o calvinismo e o puritanismo, que baste por ora dizer que este denota um mecanismo social de disciplina através do qual o comportamento religioso do crente condiciona e influencia o seu comportamento económico. Um tal ascetismo é inseparável do modo como Weber caracteriza o moderno processo de racionalização da Beruf (vocação/profissão). É, pois, muito importante deixar claro desde já que Max Weber começa por estudar o carisma olhando para esta noção com os óculos daqueles que, asceticamente, atacam sem piedade a idolatria, a saber, judeus e puritanos, uma espécie de amigos e de rivais na disputa pelo… Espírito (Geist) do capitalismo.  É, pois, no quadro do puritanismo ascético e na sua teologia da salvação que Weber descobre a mais radical contestação da crença carismática, a qual, nas suas palavras, implica uma «relação comunitária de carácter emocional». É, pois, em função deste quadro originário, ou antes, é numa relação negativa com ele, que Weber classifica os diferentes modos de manifestação do carisma, quer os descritos na sua Sociologia da Religião, quer os que ele forja nos seus Escritos Políticos.

Como observámos já, o interesse e o fascínio de Weber por esta noção resultam, num momento inicial, do seu confronto com a atitude intestinamente anti-idolátrica, anti-carismática e anti-autoritária dos radicais puritanos. Sobre esta questão, não é, de modo algum, irrelevante sublinhar-se desde já que a genealogia weberiana da ascese intramundana calvinista identifica inúmeros pontos de contacto/contágio entre o farisaísmo do antigo judaísmo e o puritanismo. Ao ponto de Weber se referir aos «efeitos caracteriológicos da penetração do quotidiano puritano pelas normas do Antigo Testamento» e de considerar a designação então corrente pela qual se caracterizava a «tonalidade ética de base do puritanismo inglês» como «hebraísmo inglês».

Antes de mais, há que referir que no que Weber chama «bibliocracia» do calvinismo está já em acto aquele idiossincrático «carácter ascético que levou o calvinismo a seleccionar os elementos do Antigo Testamento que lhe eram congeniais, assimilando-os». Com efeito, entre os efeitos da educação jurídica formal e talmúdica nos judeus e a observância da legalidade formal puritana como marca identificadora da conduta que agrada a Deus, vê Weber um paralelismo gritante. Por outro lado, que a lei mosaica não fora completamente privada da sua validade em vários dos aspectos decisivos da sua moralidade legalística (Halakha), comprova-o o facto de também no puritanismo, à semelhança do judaísmo, a oportunidade de lucro fazer parte da providência do Deus do Antigo Testamento, que assim recompensa os seus filhos, nesta vida e neste mundo, pela sua probidade e devoção. É precisamente a este fenómeno que Weber chama ascese intramundana. Uma vez secularizada, a salvação do indivíduo deixa de estar na dependência directa de Deus, para, através dele, se concentrar agora inteiramente na riqueza e no dinheiro. Encontra igualmente refúgio no segundo mandamento dos antigos hebreus «o ódio indignado dos puritanos contra tudo o que lhes cheirasse a “superstição”, contra todas as reminiscências da dispensa da graça por meio de ritos mágicos ou da adoração das imagens dos santos». Entronca ainda decididamente nesta proibição rigorista da idolatria pelas autoridades puritanas inglesas, a condenação do teatro, com o argumento de que este incitava à preguiça e prejudicava os negócios. A este respeito, Weber não se esquece de referir o encerramento do teatro de Stratford-on-Avon durante os últimos anos de vida de Shakespeare, bem como o ódio e desprezo do grande dramaturgo inglês pelos puritanos.

Mas o ponto de contacto/contágio mais efectivo entre as éticas económicas do puritanismo e do judaísmo antigo, sem dúvida aquele que doutrinariamente se revela mais decisivo nos efeitos a longo prazo da ascese intramundana, está na «condenação absoluta de toda a idolatria, enquanto desvalorização do respeito que é devido unicamente a Deus». A penetração do puritanismo pelo espírito judaico do Antigo Testamento torna-se sumamente evidente para Max Weber quando este se refere à «tremenda influência» exercida pelo segundo mandamento dos judeus sobre o carácter ascético do puritanismo. Escreve Weber: «O tabu israelita contra qualquer humanização de Deus [Gottvermenschilchung] (“sit venia verbo!”) está a par da proibição puritana da deificação da criatura que, embora diferindo em alguns aspectos, lhe é, não obstante, largamente semelhante. O Talmude, por exemplo, realça que é melhor e mais ricamente recompensado por Deus fazer uma boa acção por dever do que fazê-la quando não se é legalmente obrigado a tanto. Por outras palavras: fazer o seu dever sem amor situa-se num plano eticamente superior à filantropia realizada com sentimento. A ética puritana acharia isto aceitável», conclui Weber.

Assim, tal como o calvinismo recusou obstinadamente a salvação da alma através da graça eclesiástico-sacramental, também «o desenvolvimento da velha ética hebraica desde a época dos profetas assentou inteiramente» – considera Max Weber – «no facto fundamental da recusa da magia sacramental enquanto meio de salvação». Deve-se neste ponto enfatizar que a estrita rejeição de toda e qualquer idolatria da criatura no puritanismo restringia somente a Deus o amor ao próximo. O que isto significa é que uma vez cumpridos os mandamentos de Deus ao serviço da sua maior glória, se dava igualmente por satisfeito o amor ao próximo. Afirma Weber: «É através da actividadead majorem Dei gloriam” que o cristão prova o seu estado de graça e que o profundo horror da idolatria da criatura e de todos os vínculos [Halten] pessoais a outros seres humanos dirige imperceptivelmente essa energia para o campo da actividade objectiva (impessoal). Na ética puritana, ou em qualquer outra ética ascética, qualquer relação pessoal puramente sentimental de homem para homem – isto é, não determinada racionalmente – cai facilmente sob a suspeita de idolatria».

Finalmente, Max Weber desdobra até às suas últimas consequências políticas esta consideração sobre o repúdio pela idolatria da criatura nos puritanos quando observa que a utilidade “pública”, ou o «bem-dos-muitos», deve ter precedência sobre todo o bem “pessoal” ou “privado”, sublinhando no mesmo lance, que tanto «o carácter pecaminoso da crença na autoridade – permitida pelas Escrituras apenas a título impessoal –, como a admiração excessiva pelos homens, mesmo os mais excepcionais e os mais santos, podem pôr em causa a obediência a Deus». Mas Weber vai ainda mais longe na sua descrição quando afirma: «A repugnância tradicional dos americanos em prestar serviços pessoais tem provavelmente que ver com esta tradição, ainda que indirectamente, fora de outras razões importantes resultantes dos sentimentos democráticos. Acontece o mesmo com a imunidade relativa dos povos com passado puritano contra o cesarismo e, em geral, a atitude subjectivamente mais livre dos ingleses para com os seus grandes homens de Estado, quando comparada com o que temos vivido, tanto positiva como negativamente, na Alemanha, desde 1878. Por um lado, há neles uma maior boa vontade em aceitar o grande homem, mas, por outro, recusam toda a “adulação” histérica e a ideia ingénua de que possa existir o dever de obedecer politicamente a alguém por “gratidão”».

Por fim, uma derradeira manifestação do alcance político da condenação absoluta da idolatria fundada na ascese protestante mais radical é aquela que o grande sociólogo alemão nos fornece a respeito do comportamento rigorosamente anti-autoritário dos quacres: «É sobejamente conhecida», afirma Weber, «a maneira como os quacres aplicaram este princípio a gestos aparentemente desprovidos de importância (recusa de se descobrir, de se ajoelhar, de se inclinar, ou mesmo de tratar alguém pela segunda pessoa do plural). Mas a ideia de base é comum, até certo ponto, a todas as formas de ascetismo, que, na sua forma genuína, é, por isso, “anti-autoritário”. O protestantismo fundou historicamente o carácter especial da democracia contemporânea das nações influenciadas pelo puritanismo, em contraste com os povos de “espírito latino”. E constitui também, em parte, o fundo histórico da “irreverência” dos americanos, que uns acham detestável e outros revigorante».

Até aqui, tratei apenas da dimensão ou da determinação teológica do carisma, recorrendo aos conceitos de «idolatria» e de «magia», dos quais o carisma é, evidentemente, inseparável, pois na ausência daqueles é a própria noção de carisma que se torna ininteligível. De acordo com os fundamentos ascético-religiosos do puritanismo, não há carisma, e por maioria de razão não há carisma pessoal, sem «idolatria da criatura».

Este é o ponto da situação de onde Max Weber originariamente parte nos seus estudos sobre o que ele chama «ética económica das religiões do mundo». Só num segundo momento da sua investigação é que Max Weber começa a referir-se ao carisma como a uma «forma legítima de dominação», de acordo, como se sabe, com a sua conhecida formulação tripartida da dominação legítima: dominação tradicional, dominação racional-legal e dominação carismática. Tudo isto acontece, repare-se bem, quando a Europa estava a sair da I Guerra Mundial. É neste preciso momento que Weber resolve politizar a idolatria e intensificar a magia ao introduzir o princípio da autoridade carismática na sua explicação do exercício do poder. É uma viragem, devemos reconhecê-lo, a todos os títulos abismal! Com ela entramos já naquela dimensão ou parte puramente política da noção de carisma. Mas assim como não há teologia que não seja também política, assim não há política que não seja também teologia.

2 Política

Chegou o momento de passarmos em revista a famosa tipologia das formas puras de dominação legítima de Max Weber e, em particular, a dominação carismática e a forma de autoridade que lhe está associada. Em primeiro lugar, aparece a dominação de carácter racional, baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e no direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação (dominação legal); em segundo lugar, surge a dominação tradicional, baseada na crença na sacralidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a autoridade (dominação tradicional); em último lugar, e não por acaso, aparece a dominação de carácter carismático, baseada na veneração extraquotidiana da sacralidade, do poder heróico ou do carácter exemplar de uma pessoa e das ordens que ela revela ou cria (dominação carismática).

Antes de prosseguirmos, convém referir que o conceito de «dominação» (Herrschaft) significa para Weber a capacidade de obter obediência para certas ordens específicas, e que, portanto, qualquer relação de dominação autêntica supõe não apenas vontade e interesse na obediência da parte de quem obedece, mas uma forte crença interior na utilidade e bondade da obediência. Mas isto ainda não é tudo. Vejamos então a definição weberiana de «dominação carismática». Como é que ele a descreve? Pois bem: «O carisma é uma qualidade pessoal vista como sendo extraordinária (na origem magicamente condicionada, no caso tanto dos profetas como dos sábios curandeiros ou jurídicos, chefes de caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extraquotidianos específicos, inacessíveis a outro, ou então, considerados como enviados por Deus, como exemplares e, portanto, que levam a que a pessoa seja considerada como “líder” [Führer]».

Max Weber insiste a seguir que a força mágica ou sobrenatural do agraciado carismático depende, por parte aqueles que se deixam dominar emocionalmente pelo carisma, de um reconhecimento baseado em provas, que originariamente, segundo Weber, são milagres. Ora, isto significa que sem a aceitação e o reconhecimento interior, por parte do dominado, da verdade da revelação de que o carismático diz ser o portador, isto é, sem provas do carisma, a dominação ou autoridade do líder não é legítima. Este último ponto é deveras importante porque pressupõe naqueles que se deixam dominar pelo efeito de uma graça carismática uma obediência de carácter exclusivamente emocional, que Weber caracteriza justamente como irracional, constituindo o reconhecimento do carisma uma entrega interior sem reservas ao dever de obedecer à autoridade. Ao não depender do cargo ocupado por uma determinada pessoa numa dada estrutura político-administrativa, a legitimação carismática baseia-se numa revelação pessoal e traz consigo uma forma de obediência marcadamente emocional.

Apoiando-nos sempre em Max Weber e admitindo agora que nenhum dos três tipos puros de dominação legítima por ele referidos ocupa o espaço político na sua totalidade, absorvendo-o completamente, mas que a dominação, quando legítima, resulta de um equilíbrio instável entre aquelas três formas de dominação, daqui se segue que o peso-médio de cada tipo puro de dominação legítima na contabilidade do exercício global da dominação é de aproximadamente um terço. Não nos enganemos. Isto significa simplesmente – aliás, muito “ideal-tipicamente”, muito weberianamente – que o carisma é um apenas dos três pilares da dominação legítima. Aconselhavelmente, presume-se, ele não deverá ultrapassar este limiar, sob risco de a obediência interior de matriz religiosa, cujo dever é amar a Deus “acima de tudo”, poder ficar cativa dos caprichos e da arbitrariedade de uma «criatura idolatrada» e de o exercício da autoridade se tornar deste modo apócrifo, pessoal, isto é, mágico. Em suma, se para o Weber dos Escritos Políticos o carisma dito «pessoal» pode constituir um suplemento desejável e um momento positivo da dominação que faz explodir a rigidez da regra racional-legal e a petrificação e desvitalização da tradição, para o Weber da Sociologia da Religião o carisma é um perigoso sinal da idolatria da criatura e a fonte de um tipo de obediência mágico-religiosa que mantém o cidadão numa dependência exclusivamente emocional face às qualidades excepcionais de um chefe político “pela graça de Deus”.

Concluo esta parte da exposição de maneira um tanto ou quanto abrupta, mas rigorosamente weberiana, afirmando que a semântica histórica do conceito de carisma foi nos nossos dias sugada, por assim dizer, pelo culto capitalista do dinheiro, que tendencialmente submeteu o poder mágico (pessoal ou colectivo) do carisma (o antigo e o medieval) e o neutralizou modernamente por uma operação racional de desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), a qual equivale a uma desmagificação de Deus, substituído na Modernidade pelo culto mamonista, ou culto capitalista. Em suma, o culto a um Deus secularizado já só pode ser um culto ao dinheiro.

3 Media

 O conceito de carisma parece hoje destinado a mergulhar numa relativa escuridão e invisibilidade, pelo menos enquanto as nossas sociedades forem incapazes de representar a ideia de futuro. Efectivamente, o futuro está hoje completamente embebido no presente, e este tem uma força de tal modo tirânica que torna praticamente impossível o aparecimento e consequente reconhecimento do carisma, que necessita de uma distância aurática e de uma projecção da salvação no… futuro. Ora, sem futuro à vista… nenhuma imagem propriamente dita do carisma pode verdadeiramente aparecer, pois, segundo Max Weber, a forma mais elevada da autoridade carismática é a que se manifesta no dom pessoal do profeta. Efectivamente, a projecção e antecipação do futuro, seja na sua pessoa, seja, sobretudo, na doutrina revelada ou nos mandamentos comunicados, é o que propriamente constitui a profecia. Definitivamente, à luz das categorias de Max Weber, não vivemos hoje em tempos favoráveis à propaganda profética. E dificilmente se poderá falar seriamente de carisma profético a propósito de homens como Bill Gates, Jeff Bezos, Elon Musk e tutti quanti. Na tipologia “ideal-típica” de Max Weber homens como estes seriam talvez sumo-sacerdotes, zelosos administradores da dominação racional-legal, mas nunca profetas.

Convém, no entanto, precisar que, sendo embora o profeta um dispensador de bens de salvação, ele deve ser distinguido dos demais salvadores – religiosos ou não. O profeta não recebe um encargo atribuído pelos homens, usurpa-o e provoca o seu reconhecimento pela comunidade emocional confessional. O profeta, na significação que Weber atribui ao termo aisymnétes, está sempre associado ao mestre moral ou mestre de ética social. Só o profeta, ao contrário do guru, do tirano, do magister, mesmo do mistagogo que administra sacramentos e pratica actos mágicos que garantem bens de salvação, possui uma prédica emocional autêntica e efectiva. Mas, como ironicamente observa também Max Weber, o profeta encontra-se sempre «mais perto do demagogo e do publicista político do que do “serviço” de um professor».

  1. Conclusão

 

Num mundo radicalmente desencantado, como é o da nossa contemporaneidade, o carisma já só deveria poder ser entendido como uma crendice e uma impostura política. Afinal, o emblema do iluminismo, que Kant, no século XVIII, formulou como «a saída do homem da sua menoridade, da qual ele próprio é o culpado», exigia do cidadão esclarecido que este tivesse a coragem de se servir do seu entendimento sem a orientação ou condução de outrem. Todo o contrário, portanto, da reverência, veneração, obediência, entrega sem reservas, sacrifício, servidão voluntária, sentimento pessoal de nulidade e disposição para a instrumentalização emocional próprias da dominação carismática. Por um lado, o carácter decisivo da noção de «desencantamento do mundo» (Entzauberung der Welt) tematizada por Max Weber está precisamente em que na modernidade política os seres humanos se percebem e avaliam uns aos outros de um modo tal que esta deve impedir que um deles possa dispor de qualidades excepcionais, sobrenaturais e extraordinárias, ou de poderes taumatúrgicos política e eleitoralmente consagrados. Por outro lado, no mundo contemporâneo o grande pólo de comparação da humanidade já não é a divindade, mas a tecnologia e o poder das máquinas, e estas, pela sua própria natureza, fecham em grande medida as portas à irracionalidade arcaica do carisma.  Como o viu muito bem Sigmund Freud na sua análise psicanalítica do «ideal do ego», o líder de uma determinada massa humana, apelando ao seu séquito, não anula por si mesmo a fragilidade psíquica dos indivíduos que a formam, antes disfarça ou dilui a insegurança psíquica neles presente com o típico entusiasmo do condutor de homens, razão pela qual ele os representa, no sentido político do termo representação. Sob esta perspectiva, tem razão o filósofo José Luis Villacañas ao observar que «o carisma não é senão a reversão da insegurança em entusiasmo. Daí a sua dimensão inevitável de impostura. Quanto mais entusiasmo, mais insegurança há sepultada. O líder carismático sepulta a insegurança no entusiasmo; os seguidores sepultam-na no cálculo dos seus interesses. Mas, de certo modo, são todos uns impostores».

Num tempo como o de hoje, vivido e experimentado numa atmosfera de completa imanência, torna-se degradante e menorizante aceitar a linguagem da infabilidade própria da dominação carismática. Não só essa infabilidade não existe, como ela é profundamente contrária aos modernos princípios filosóficos da crítica. Neste sentido, vincular o providencialismo e o messianismo, típicos das lideranças carismáticas, ao princípio democrático liberal é vincular o destino das democracias às tentações do autoritarismo.

Em Mein Kampf, Hitler, o grande histrião do carisma no século XX, formulou a chefia autoritária (Führertum) do povo alemão deste modo: «Führen heißt: Masse bewegen» (Conduzir é pôr as massas em movimento).

Hoje o mundo inteiro conhece o preço que teve de pagar ao deixar-se mobilizar pela crendice e impostura do seu carisma.