1 Eureka! O acto de pensar é um acto emotivo.

O interesse da filosofia pelas emoções, pelos sentimentos ou pelas paixões foi quase sempre justificado pelo tipo de relações que estas noções podem manter com a ideia de razão, e não como algo portador de um valor autónomo e de um sentido intrínseco. Independentemente do modo com a tradição filosófica moderna definiu e interpretou o significado destes três termos, distinguindo, por exemplo, a emoção como um sentimento breve e abrupto, o sentimento como uma experiência consciente e a paixão como um sentimento intenso, a verdade é que no vocabulário filosófico moderno a reflexão sobre as emoções, quer estas sejam designadas como paixões (Descartes), afectos (Espinosa) ou sentimentos (Adam Smith), fez-se quase sempre no quadro de uma antinomia com a razão. Seja como for, no espectro epistemológico com que a modernidade tratou a emoção, apesar de tudo plural e matizado, prevalece a ideia de que um indivíduo ou uma pessoa com carácter e sensibilidade moral reage afectivamente diante das imoralidades e das violações das regras morais básicas. Esta capacidade de intensificar e de subjectivar de modo adequado os afectos comuns, ou os afectos propriamente políticos, faz, aliás, parte da nossa herança genética mais louvável, pois a actividade neurológica desenvolvida na expressão social das emoções precede e desencadeia o juízo moral.

Por isso, a utopia ou a ficção racionalista de um indivíduo completamente livre de emoções, porque as conseguiu conjurar e porque se conseguiu livrar daquelas que mais o perturbam e confundem, poderá até ser uma hipótese academicamente admissível, em todo o caso um tal indivíduo nunca poderá ser uma criatura integralmente humana e suficientemente empírica, uma vez que, posto nessa condição, escaparia àquela incompletude radical ou “vulnerabilidade” essencial que nos constitui e que define a potência de sociabilidade dos indivíduos. Com efeito, um cidadão completamente apático ou incapaz de afectos morais adequados expressos no tempo certo e de maneira adequada e proporcionada será sempre uma espécie de contradição política nos termos, uma vez que não será capaz de se apaixonar civicamente por aquilo em que alega acreditar. Por consequência, a desejabilidade ética de um equilíbrio político das emoções, ainda que este seja necessariamente instável e por natureza frágil, não resulta de uma imposição ou de uma repressão tirânica da razão sobre a emoção. Ao invés, nós utilizamos a razão, não para aniquilar ou rasurar, tout court, as emoções, mas para as transformar, orientar e aplicar, para deste modo podermos modificar e variar os comportamentos que delas resultam, para, em suma, darmos significado – e significado político em primeiro lugar – à acção. A estrutura das emoções é feita de crenças, juízos e cognições, além, evidentemente, de desejos e apetites que nos predispõem a agir de uma determinada maneira. E servimo-nos dos juízos implícitos e das cognições intrínsecas aos nossos afectos para racionalizarmos as emoções e para enriquecermos a razão com a paixão.

No século XX, a filósofa Hannah Arendt formulou com equilíbrio e escrúpulo esta capacidade do ser humano em ser afectado quando vê ofendido e humilhado o seu sentimento de justiça e de decência humanas: «A ausência de emoções não causa nem promove a racionalidade. Para reagirmos razoavelmente perante uma ‘tragédia insuportável’ temos de começar por nos sentir ‘afectados’, e o que aqui se opõe ao emocional não é o ‘racional’, qualquer que seja o sentido que se lhe dê, mas antes, uma de duas coisas: ou a incapacidade de nos sentirmos afectados, que é, em geral, um fenómeno patológico, ou o sentimentalismo, que é uma perversão do sentimento».

É precisamente na sua ambivalência essencial (serem potencialmente tanto boas como más) que reside a maior riqueza das emoções ou dos afectos comuns. Na capacidade de nos fornecer motivações para a acção, sem, contudo, determinar o conteúdo dessas acções, está o essencial da ambivalência das emoções, pois as emoções tanto estão na origem da nossa luta pela liberdade e pela autonomia, como estão na origem das tentativas de as suprimir ou diminuir. Na linguagem empregue por Espinosa na sua Ética, se desejamos o bem da cidade, cabe-nos tentar aumentar as paixões alegres e reduzir as paixões tristes. São elas que aumentam a nossa faculdade de julgar e a nossa potência de agir.

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Por alguma razão essencial, na Filosofia as emoções são tratadas na disciplina da Ética. A Ética de modo nenhum pode prescindir da parte afectiva ou emocional do ser humano, precisamente porque a sua principal tarefa é organizar os afectos e as emoções comuns e dotá-los com um significado sensível preciso e publicamente reconhecível e partilhável. Efectivamente, nenhuma Ética digna desse nome poderá alguma vez ignorar a vida emocional ou se empenhará na sua mera repressão ou tiranização. Ao invés, o desígnio da Ética é encaminhar o emocional e conduzir o sensível numa direcção que se crê apropriada, isto é, aquela que propicia uma vida pública boa. Evidentemente, nesse encaminhamento das emoções a faculdade racional possui um papel de relevo e mesmo um papel predominante. No entanto, a razão não existe para eliminar ou erradicar as afecções da alma, como Platão e os estóicos, com o seu ideal de ataraxia (imperturbabilidade/serenidade), presumiam, mas para lhes dar um sentido que possa realmente convir ao que Aristóteles chamava uma «vida boa», seja esta «vida boa» a vida privada do indivíduo, seja, por maioria de razão, a vida pública da comunidade.

2 Aristóteles e as emoções.

Mas, o que são, afinal, as emoções? Para que servem? A que domínio do conhecimento pertencem? Pois bem, as emoções são os móbiles ou os gatilhos das nossas acções. De acordo com Aristóteles, as emoções, todas as emoções, têm um substrato cognitivo, e não meramente sensitivo. E é exactamente porque as emoções estão profundamente vinculadas ao conhecimento prático e, de certo modo, misteriosamente enleadas com ele, que Aristóteles se interessa tanto por elas: «As emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer».  Mas se as emoções podem induzir e guiar as nossas acções, podem também confundi-las, paralisá-las e impossibilitá-las. Trata-se então de aprender a conhecer melhor as emoções e o seu funcionamento para, por pouco que seja, as podermos de algum modo, não, digamos, governar, mas regular e moderar, isto é, manter na medida justa, em vez de sermos pura e simplesmente comandados por elas, tal como sucede um pouco por todo lado no emocionalismo desenfreado e no sentimentalismo que caracterizam uma vida pública contemporânea submetida ao imperativo tecnológico e político das redes sociais.

O que a razão prática de Aristóteles nos sugere é que devemos inquirir a origem e a causalidade dessas emoções, analisar aquilo que as produz com o fim de as potenciarmos ou evitarmos, de forma a que uma dada emoção se dê de um modo tal que ela convenha o mais possível ao sujeito que a experimenta, orientando-o, com segurança, na condução da acção. Transposta a questão para o nosso tempo, trata-se, portanto, de procurar conhecer o que provoca e desencadeia as emoções públicas nas sociedades contemporâneas, o modo como elas influenciam o nosso comportamento cívico, que crenças e opiniões elas alimentam e que motivações para agir delas se podem deduzir. Numa fórmula simples, mas pregnante e incisiva, pode dizer-se que a Ética é, pura e simplesmente, um arranjo inteligente das emoções, ou, dito de outra forma, que a Ética é a própria «inteligência emocional» em acto.

Uma defesa ponderada – sine ira et studio – do lugar e da função das emoções na complexa e atribulada vida moral das nossas sociedades contemporâneas sublinha necessariamente a importância moral de sermos capazes de ter emoções apropriadas, num grau e numa intensidade apropriados e nas situações apropriadas. Não é certamente por um acaso que o celebrado estudo de Daniel Goleman, Inteligência Emocional, começa com uma oportuna citação da Ética a Nicómaco de Aristóteles: «Qualquer um pode zangar-se [irar-se, encolerizar-se] – isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na justa medida, no momento certo, pela razão certa e de maneira certa – isso não é fácil».

Que baste esta passagem para nos darmos conta de que o problema de Aristóteles é ainda hoje o nosso problema. Vejamos um exemplo. A emoção da ira ou cólera, que acompanha o sentimento de indignação, hoje tão presente nos humores polarizados da cidade. O que Aristóteles com aquela frase nos quer dizer é que devemos aprender a zangar-nos ou a irar-nos apenas com o que verdadeiramente merece uma zanga ou vale uma ira. Uma lição que, sendo embora simples e elementar, é extremamente difícil de pôr em prática: como aprender a ter os afectos adequados e os sentimentos justos, ou, como diríamos talvez hoje, como aprender a sentir, em cada caso e de acordo com a particularidade e contingência da cada situação, as emoções adequadas, no momento adequado e na medida e proporção adequadas?