“É mais difícil encontrar um homem capaz de suportar a felicidade do que a infelicidade”, escreveu Xenofonte em A Educação de Ciro, suspeitando de que, em vez de afanosas incursões em busca de quem a conheça, melhor seria atentamente olharmos para estes nossos entornos – para dentro, sobretudo – para ver que coisa esconde aquela estranha inquietação que por vezes nos domina.

Embuçada e serena, a felicidade tem por uso ser miúda, comum, discreta, simples. Quando algumas noites escuras nos arrastam, um olhar atento e um coração ligeiro é tudo quanto ela nos exige. Será uma outra forma de conhecimento, talvez. Como a do íbex saltando de pedra em pedra: tudo passa por baixo dos seus pés com exactidão; o animal não hesita, não é ele que busca apoio – salta e o mundo vai ao encontro dos seus cascos.

Envolvidos em fios melódicos – diversos, serenos, ermos, casuais, desamparados – que espécie de atenção nos pede cada um deles? Que harmonia revelarão quando um dia convergirem?

Joseph Haydn, por exemplo, confessava, naqueles minúsculos diários que sempre levava consigo nas suas viagens, que procurava pacificar um antigo sofrimento acústico que tivera origem em Rohrau, na fronteira entre a Áustria e a Hungria, e que recuava à década de 1730: o murmúrio do Leitha, a oficina do fabricante de rodas, o pai iletrado, a madeira utilizada no fabrico das rodas, uma antiquíssima intimidade com o ulmeiro, o freixo, o carvalho, o carpino, com os fustes, as rodas e as traves, com a bigorna do ferreiro, os golpes das marretas, com as serras e com os seus dentes – numa palavra, com todo o pathos daquele vínculo infantil que o acometia com os seus ritmos. Resolveu defender-se compondo, até àqueles meses que antecederam a sua morte, meses durante os quais esses ritmos enterraram cada vez mais Haydn a uma velocidade que o impediu não apenas de os transformar em melodias, mas até de os registar – tanto tudo quanto a linguagem não pode traduzir para ser retido, como nada que possa ser saudado pela linguagem para ser expresso e condenado à morte. O inverbalizável.

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Haydn dizia existirem dentro dele golpes de martelo exactamente iguais aos que Deus ouviu, enquanto lhe cravavam as mãos vivas e martelavam os pés juntos e vivos, num dia de tempestade, quando, no cimo de uma colina, deu por si preso a uma cruz, ao lado de um tratante tão experimentado nas artes do furto que, nos últimos instantes da sua vida, até o paraíso lhe arrebatou.

O adjetivo feliz, do latim felix, deriva da mesma raiz verbal indo-europeia *fe – que está na origem, por exemplo, de fecundus, que significa «fértil», «úbere». O francês tomou um caminho diverso – latino, ainda assim – para expressar a mesmíssima ideia: heureux deriva de uma formulação occitana do latino augurium – profecia, antecipação, desejo. Férteis não são, portanto, apenas os campos de trigo acabados de lavrar. Também nós somos fecundos, graças à felicidade de nos podermos surpreender realizando gestos espontâneos que jamais teríamos imaginado.

Em grego, a felicidade estava contida num brevíssimo verbo: φύειν – “nascer”, “brotar”, “crescer”. Dessa mesma palavra, deriva φύσις (physis), um termo de difícil tradução nestas nossas línguas modernas tão – talvez até demais! – pragmáticas: natureza e naturalidade ao mesmo tempo, realidade primeira e fundamental, princípio e causa de todas as coisas. Começo e simultaneamente fim, a felicidade como devir natural do mundo segundo os filósofos pré-socráticos – na verdade, aqueles que “inventaram” a filosofia, em busca de um remédio para uma alma fecunda.

Ser feliz, portanto, não significa de todo não experimentar agruras, contratempos, dissabores, frustrações, nem vivenciar um imperturbável estado de quietude – a isso chamar-se-ia, na melhor das hipóteses, tranquilidade, calma. A felicidade é o exacto oposto: é a energia da ação, a alegria do fazer, o desejo de mudar, o júbilo de estarmos vivos e, portanto, férteis, de assistirmos ao florescimento daquilo que somos.

A infelicidade é o seu contrário: a incapacidade de nos movermos, de alijarmos aqueles pensamentos pesados, a impossibilidade de darmos um só passo que seja. O seu sinónimo etimológico? Esterilidade. A teimosia de continuarmos a lançar a semente daquilo que temos de melhor no deserto, onde, sabemos muito bem, nada brotará. Uma é ação, a outra inação. Ímpeto para cima ou impulso para baixo. Não dizemos nós dar saltos de alegria e, pelo contrário, sentir-se em baixo?

É difícil percebermos que o nosso ser feliz ou infeliz não é estagnação, mas um processo contínuo, portanto movimento, como dita a etimologia. Muitas vezes parece-nos que a tristeza durará para sempre e que a felicidade nada mais é do que um efémero interlúdio, uma chama breve. Tememos ambas.

Quase só conseguimos compreender-lhes os mecanismos olhando para trás, nunca para frente, naquele efeito elusivo com que a memória gosta de nos enganar – à semelhança das sementes dos documentários que, em poucos minutos, se transformam em frutos numa acelerada sequência de imagens que omitem o tempo, as estações e todos os insectos que foram necessários para aquele processo.

Quando conduzimos o pensamento até à infância – tantas vezes refletida nas memórias da forma despreocupada e alegre diante dos problemas que a vida adulta coloca – não poderemos por certo dizer que vivemos única e exclusivamente momentos de felicidade. Também na infância chorámos, sentimos dor, tédio ou a exclusão.

Hoje recompomos aqueles anos passados ​​entre a escola e a brincadeira, entre a cozinha e as férias grandes, com os instrumentos com que, crescendo, nos fomos gradualmente enriquecendo: consideramos mínimas as feridas do corpo e da alma de quando éramos crianças; invejamos aquele nosso viver junto a todos os que hoje talvez já não se encontrem aqui; sentimos falta do langor com que, plácidas, passavam as horas, da felicidade de um pequeno presente ou de uma carícia do pai. Não é que estejamos errados, não temos de corrigir a nossa forma de olhar para o passado. Trata-se simplesmente de uma reconstrução da experiência não muito diferente daquilo que fazemos, a cada momento, com a percepção do assim chamado presente: o presente não existe senão na distensão da alma que recupera memórias e as projeta para o que virá – o presente é, portanto, inefável por definição, o fino traço entre um passado que recordamos e um futuro que, graças à memória, antecipamos.

Se, como disse Theodor Adorno, “nenhuma arte existiria sem a memória do sofrimento”, também a felicidade se pode aprender e aprofundar graças à dor. Não a felicidade do néscio nem a de quem vive na abundância e por isso se pode dar ao luxo de desprezar a responsabilidade etimológica que esta palavra transporta, mas a do íbex de cascos ligeiros, gratos e atentos, cumprida em cada salto, em cada abandono, em cada instante no qual, a meio caminho entre a rocha que deixámos e aquela para que apontamos, não existe chão.

Sentamo-nos numa cadeira. As lágrimas que secamos são muito antigas, mais antigas do que a identidade que nos vamos construindo. O distante canto numa capoeira deixa subitamente em lágrimas um homem parado ao canto de um alpendre, nos primeiros dias do mês de abril, poucos minutos antes de a alvorada branquejar todas as sombras. O cantar de um galo que ficou desde então preso (provavelmente para marcar a memória destes momentos febris que certos sons sancionam ou anunciam) no topo dos campanários das igrejas do mundo.

Os vestígios predizem o tempo, predizem o futuro. Certos sons, certos zumbidos revelam que “passado” está presentemente dentro de nós. A música é tudo quanto o homem deve ao tempo: andante molto mosso – há qualquer coisa a começar…