Existem os grandes tratados, as grandes questões, as grandes propostas. A seguir, as entrevistas de lifestyle, que, muito justamente, ombreiam com as primeiras. Na verdade, o que é a Ética a Nicómaco de Aristóteles senão um manual de lifestyle, escrito no séc. IV a.C., só que sem aquela parte chata das roupas e dos acessórios?

Ainda a semana passada comprovei esta teoria. Deparei-me com um podcast onde o entrevistado, o cantor Dino de Santiago, formulava uma teoria pela qual todos ansiávamos.

Quando a entrevistadora lhe pergunta se se considera um bom marido, Dino responde categoricamente que não, porque, conforme afirma, “no que diz respeito à construção do que é um homem numa relação conjugal, eu sinto que ainda herdei muita coisa do patriarcado”.

Antes de mais, tenho que assinalar que se trata de um argumento com demasiadas palavras para eu conseguir acompanhar. Mas, felizmente, Dino de Santigo explica onde é que a herança do patriarcado se concretiza, e parte para um exemplo: “Tenho dificuldade em perceber quando é que a casa está suja”.

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Ora, finalmente. O que eu não tinha dado por ter esta desculpa à mão quando a minha mãe reclamava por o meu quarto não estar limpo. Ela dizia logo que eu era desorganizado, trapalhão, imundo, sujo, e afinal de contas havia uma saída mais fácil: “Não sou porco, mãe, herdei foi demasiada coisa do patriarcado”. Mas ela, em vez de compreender o meu sofrimento e de procurar urgentemente ajuda, insistia em me educar através de princípios básicos da higiene. PORQUÊ, MUNDO CRUEL?

Eu não me quero arvorar em exegeta, mas tenho a leve sensação que não é despropositado concluir o seguinte: quando se diz que há “dificuldade em perceber” que algo está limpo ou sujo, por causa da influência do patriarcado, é porque se está a afirmar, implicitamente, que isso acontece porque essa sensibilidade pertence, por natureza, às mulheres, o que é, em si, um argumento levemente machista. Para dizer o mínimo. Ou seja, vai-se a ver, e é possível que certo anti-machismo de hoje, seja a mesma coisa que o machismo de antigamente, mas só que mais fofinho e com hashtags.

Num artigo da semana passada, Maria Castello Branco argumentou, com muita justeza, que a vitória de Donald Trump não deixa de ser a “fatura da alienação democrata”, que gerou “um povo cansado de uma moralidade impenetrável e elitista”. E a ideia de que herdamos “demasiada coisa do patriarcado” é mais um prego para esse caixão, construído pelos novos Diáconos Remédios: os que pregam os “bons costumes” e a “sã doutrina”, que não veem desculpas para a imoralidade dos outros, mas encontram sempre uma para justificar a sua.

A procrastinação? Herança do patriarcado. A desorganização? Herança do patriarcado. A incapacidade de separar roupa de cor da roupa branca? Herança do patriarcado. Chegar atrasado a compromissos? Herança do patriarcado. Tudo parece reflexo de um trauma permanente que não nos larga e que só insiste em estereótipos, mesmo dizendo que os quer combater. Não perceber que algo está sujo ou limpo não é culpa do patriciado. É só preguiça e desleixo. Da mesma forma que não ceder o lugar a um idoso num transporte público não é culpa do colonialismo, nem tirar negativa no exame nacional de matemática culpa da pandemia.

Na lógica existe o Princípio de razão suficiente. Nestes novos movimentos existe o Princípio da culpa universal. Felizmente, estes novos movimentos foram buscar algo ao universo religioso, e, por isso, sinto-me em casa. Ressuscitaram, por exemplo, o ato de contrição. E como não nos sensibilizarmos com esta prática? De facto, depois desta entrevista fico, cada vez mais, com esta sensação: não importa se as práticas mudam ou não, o que importa é pedir desculpa, e pedindo desculpa está tudo bem. Antes dizia-se: “Ele bate-me, mas eu até gosto dele”. Hoje é: “Ele bate-me, mas não há mal: a culpa é do patriarcado, e ele sabe disso”.