Nenhum homem existe que não tenha sentido, pelo menos uma vez, o irreprimível apelo da partida, aquele “místico estremecimento”, como lhe chama Melville, de “nem o navio nem nós podermos já ser vistos de terra”. Abençoados pelo tempo – essa ínfima parte da eternidade – consome-nos a urgência de tudo. E o lume da ânsia em que ardemos, iluminando-nos o caminho, queima-nos, calcina-nos. Saudamos as vastidões porque horizontes largos permitem a respiração da chama e a redenção de tão curtas vidas. Apolónio de Rodes sabia: “a viagem que leva os homens a zarpar acaba sempre por, irremediavelmente, chegar”.

Jasão não pensava ser chamado, ainda rapaz, a ser o primeiro a sulcar o mar. No seu porto distante, Medeia, uma menina apenas, não esperava nenhum estrangeiro por quem se apaixonar. Um partia para voltar para casa e salvar o pai; a outra rejeitava o pai e partia para nunca mais voltar. Escolheram ambos o mar e chegaram ao fim bem diferentes de como haviam começado: já não eram jovens, tinham-se tornado homem e mulher – heróis.

Para os gregos, herói era o que sabia escutar-se, escolher-se no mundo e aceitar a mais dura prova exigida a todo o homem: a de nunca se trair. Vitórias e derrotas não são definitivamente a medida do heroísmo: na Antiguidade, herói é aquele que decide a sua vida, a sua medida será sempre grande porque será a da sua ousadia. E se Platão, no Teeteto, disse que “pensar é o acto da alma que fala consigo mesma”, a revolução plenamente grega consiste em uma e outra vez dirigir a palavra àquilo a que tantas vezes impomos o silêncio: dizermo-nos por dentro para poder escolher, amando-nos como somos na mais íntima pureza de um livro sussurrado ao ouvido na velhice.

É frequente hoje colocarmos a nossa bitola quase ao nível do solo, convencidos de merecermos muito pouco, quase certos de que os nossos horizontes não podem nunca estar encobertos, e acabamos por temer desejar, em nome da falsa tranquilidade que nos dá o facto de nada mudar.

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Esmaecida e degradada, a palavra herói serve hoje para definir apenas vencedores, marechais de verbo oco – excelência! inovação! – que, ao ritmo das botas cardadas da sua vacuidade, transitam de TedTalks para livros de auto-ajuda com a resoluta diligência de uma lesma. E quase nos acontece esquecermos aquele colóquio interior que apenas o gesto de nos fazermos ao mar nos pode fazer descobrir novamente. Juntamente com o amor, centelha de heroísmo em cada vida particular, que sabe elevar aos astros a nossa medida interior. Medeia e Jasão foram os primeiros, mas não os últimos. Eles são a viagem de ida e volta de toda a jornada humana.

O mar é uma língua antiquíssima e as suas palavras são um mapa a decifrar. Não tem fim, mas multiplica inícios sob a forma de horizontes. Ele conhece a arte do encantamento, do assombro, do medo, da impaciência e da espera. Engole naus, oferece presentes e ténues linhas de pele tisnada em mãos sobre o peito (para cima, para baixo), surpreende-nos em portos não assinalados em mapas traçados por outros que não nós. É doce nas suas ondas e cruel nas suas tempestades; a sua água é salgada como o suor do cansaço, como o pranto da dor, como as lágrimas de uma alegria há muito abafada pela promessa de uma voz cuja “beleza salvará o mundo”. A barca é bela e no casco, pintado de fresco, está o nosso nome. Na viagem dos heróis, essa barca somos nós.

Em breve chegaremos ao porto, para isso atravessámos a imensidão da água. Uma nova vida nos aguarda, a que sempre desejámos antes de aceitarmos o desafio de partir. É a vida que tanto temíamos pedir a que vem ao nosso encontro.

Por essa razão partimos: deixarmos de viver como importunos – etimologicamente, alguém sem um porto para sermos quem realmente somos – e não importunarmos, não confundirmos, não desorientarmos quem realmente amamos, aquilo em que realmente acreditamos. Para não continuarmos a vaguear distraidamente, mas reencontrarmos um fio, uma terra, um chão para os nossos pensamentos.

Inefáveis ​​são as cores da água – impossíveis de arrumar em armários ou em gavetas – pois não pode chamar-se pelo nome a luz que a acende durante o dia – transparente, cobalto, cristal, turquesa – e a apaga à noite: negro, vinho, lua. O mar conhece a lei do equilíbrio entre a presença e a ausência que tantas vezes nos escapa e nos abate na espera daquilo que, apenas por enquanto, não conhecemos ainda. E o que não somos ainda. Ainda…

O seu nome tanto pode ser masculino (italiano, português), como feminino (francês), como neutro (línguas eslavas). É todas as mulheres, todos os homens, todos os pensamentos que habitam os nossos portos, dos mais distantes aos mais próximos. O mar chama, e é nossa obrigação, do inventário daquilo que somos, escolhermo-nos todos os dias: homens impacientes, filhos amados, mães apreensivas, amigos leais, amantes arrebatados, rapazes rebeldes, mulheres prudentes, crianças inquietas – a simultaneidade de todos os nossos eus desfraldados como uma vela.

Não há, em viagens, tempo perdido. Todo ele é, pelo contrário, tempo reencontrado, pois, nas idas e vindas das marés, o herói quotidianamente descobre o que é, não o que foi, nem o que será.

Todos os dias, enfunadas as velas do Argo, fazemo-nos ao mar e enfrentamos ventos e tempestades para chegar à costa ou para sermos diferentes daquilo que éramos quando partimos, passamos a linha de sombra e cruzamos o nosso umbral. O mar exige que escolhamos para onde vamos e porquê. Podemos ignorá-lo; invocar falta de tempo, e pode até dar-se o caso de não o ouvirmos – esse mar, que nos fala nas remotas palavras de uma língua desconhecida, pode ser assustador ou gentil. Mas, sem avisar, sem qualquer vento que o anuncie, haverá sempre um mar que, pacientemente, nos conduzirá àquele gesto arcaico, humano: cruzar o umbral e mergulhar. Em nós.

“Chamem-me Ismael.”

Vamos?