Qual ideologia ou estratégia política. O que aqui temos, aquilo em que estamos é no jogo da vermelhinha. Lembram-se? Uma rua esconsa mas com várias saídas, três cartas de jogar, sendo duas pretas (paus ou espadas) e a terceira, a vermelhinha (dama de copas ou de ouros).

O jogador começava por mostrar a vermelhinha. Depois de manipular as cartas com grande velocidade convidava alguém da assistência a tentar descobrir onde estava a vermelhinha.

Para ajudar ao logro havia sempre um cúmplice. Este apostava e acertava quase sempre. Dispunha-se até a dar uma ajuda àqueles que na assistência hesitavam em arriscar no jogo o dinheiro, geralmente pouco e ganho com dificuldade, que tinham consigo. Sussurrava que a vermelhinha tinha um dos cantos dobrados… E lá acontecia o que tinha de acontecer: um ingénuo entrava no jogo, à primeira aposta ganhava quase sempre e daí em diante perdia e perdia… Aliás perdia cada vez mais porque o montante das apostas subia. Quando algum dos que ficavam de bolsos vazios tinha a lucidez de parar para pensar concluía o óbvio: fora enganado. O canto dobrado passara para as cartas pretas. E era nesse momento, o momento em que alguém tentava desmontar o esquema da batota, que o homem da vermelhinha dava o seu golpe de mestre: alguém – o cúmplice ou ele mesmo – gritava que vinha lá a polícia e todos tratavam de desaparecer rapidamente. Claro, que não aparecia polícia algum. Quem desaparecia na confusão eram o homem da vermelhinha e o seu cúmplice. Às vezes era mais do que um. Uma vez a salvo aproveitavam para fazer o balanço de quanto tinham apurado à custa da ingenuidade daqueles papalvos que, por por essa altura, deviam estar a tentar perceber se a polícia vinha ou não e como se livrariam da acusação de ter entrado num jogo clandestino.

Portugal, em Abril de 2016, é um jogo da vermelhinha. Todos sabemos que estamos a assistir a um logro, um logro que vai terminar algures quando um dos jogadores gritar “Vem aí…” pode ser a UE, o BCE ou a inviabilização de uma medida convenientemente atirada para a frente. Por agora, ainda ninguém grita. Joga-se. Logo constroem-se programas e planos em cima de previsões irrealistas: o Programa de Estabilidade parece ter sido produzido numa sessão de pensamento positivo. Já o Plano Nacional de Reformas, esse em que o primeiro-ministro disse que devíamos depositar a nossa esperança, é um amontoado daquele falejar do “implementar para promover as sinergias decorrentes do processo…” que se traduz em nada de nada. Na verdade tem uma medida, uma medida que acredito até que pode bem ser o pretexto para que Costa grite “Vem aí”… Mas já lá iremos. Por agora fiquemos nesse ambiente irrealmente magnético que se instala quando sabemos que estamos a ser enganados mas não conseguimos deixar de olhar. O mais desconcertado com tudo isto é esse pobre Sócrates que não percebe ou recusa perceber que devia ter levado o mesmo destino que os esfomeados, os desesperados, os trintões que choravam por emigrar e deixar os braços das mães, os casamentos arruinados pela crise, os desesperados que iam pegar fogo aos subúrbios, as senhoras vestidas de cor-de-rosa e os sindicalistas de bandeiras negras que antes do anterior primeiro-ministro ou de qualquer membro do seu governo aparecer onde quer que fosse já lá estavam dando conta dos seus sofrimentos aos jornalistas… Toda este gente se sumiu de um dia para o outro. A isso não se chama batota mas sim descrispação. Mas, dê-se-lhe o nome que se quiser, mal se desfaça o jogo da vermelhinha já eles estarão de novo a abrir telejornais.

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Sócrates, um egocêntrico que pôs o PS ao seu serviço, não percebeu que devia apagar-se. Não porque esteja a contas com a justiça mas sim porque se tornou numa espécie de excrescência da realidade que como tal há que arredar para o canto. Uma excrescência que se torna obviamente incómoda não apenas por aquilo que revela de si mesmo mas sobretudo dos outros, agora os homens-fortes da geringonça. Esses homens apoiam Costa com a mesma determinação e determinismo que outrora reservaram a Sócrates. Mas se o projecto de Sócrates se foi tornando cada vez mais uma questão pessoal, já Costa abre-lhes o caminho para algo mais duradouro: consolidar o Estado como eixo da política e do poder da esquerda.

À luz desta concepção o absurdo torna-se sinal de inteligência: entregar o dinheiro da Segurança Social ao imobliário, mesmo sabendo que se vai perder dinheiro? Não interessa. Interessa sim que os jovens e a classe média, que o presidente da CML, Fernando Medina, e António Costa dizem querer trazer para a cidade, acabem na lista de dependentes do Estado. No peditório à assistente social de uma casa maior. A reunir com o grupo de trabalho para mudar de bairro…

Aumentar a clientela do Estado em todos os escalões não é para a esquerda uma questão tão só ideológica: é aí que está a chave do poder. E por isso também não é nada absurdo que o BE e o PCP assistam a tudo e ao seu contrário mudos e calados (onde andará Ana Avoila, agora que se sabe que os funcionários públicos não vão ser aumentados até 2018? Quero acreditar que ficou afónica durante os protestos contra a troika e o governo anterior! Ainda não me habituei a ver um noticiário sem deparar com Ana Avoila indignada, Ana Avoila a anunciar uma greve, Ana Avoila a garantir mais uma jornada de luta…) Por agora o que conta para o PCP e o BE é a partilha com o PS do controlo das unidades de missão, do ministério da Educação, da Saúde, ou a reversão das privatizações das empresas públicas…

Não por acaso um dos fenómenos mais constrangedores dos últimos tempos é a obstinação mostrada por esta nova esquerda, na hora de deixar o poder: da Venezuela ao Brasil aquilo que vemos é uma espécie de mundo às avessas, em que gente que, se fosse de direita, já estava em casa há muito tempo e sem ninguém que a defendesse, a resistir tenazmente a deixar o poder. Aliás não só não se demitem como usam como milícias aquilo a que pomposamente chamam movimentos sociais e sem sombra de vergonha na cara apresentam como defesa os mais inverosímeis argumentários: Dilma considera-se alvo de machismo e Maduro declara que corta a energia eléctrica para combater as alterações climáticas.

Dirão que isto não é batota mas sim ilusionismo. Puro engano. No ilusionismo há arte, mistério e contenção. Aqui há uma boçalidade crescente. Esta gente fala mal, tem algo de rústico, perde o verniz na primeira contrariedade. Tenho pena – porque apesar de tudo a estética também conta – mas isto não é um espectáculo de magia mas sim um jogo de batota. Na rua. Com bocas e apartes: Mario Draghi observa no Conselho de Estado a necessidade de Portugal realizar reformas e logo Costa responde com aquele ar de quem acha que está a dar uma resposta tão brilhante que logo ali arruma o adversário que “grande parte [das reformas] mencionadas pelo presidente Draghi dizem certamente respeito a países que não Portugal”. O Conselho das Finanças Públicas mostra as suas dúvidas sobre o Plano de Estabilidade e logo o deputado Galamba, com aquele seu idiolecto de fino recorte – a má educação é o primeiro refúgio daqueles que são promovidos a especialistas de uma área que não dominam –, destrata o organismo liderado por Teodora Cardoso.

Felizmente para os seus membros que o Tribunal Constitucional entrou em hibernação, quiçá retiro budista ou experiência do carmelo, pois desde finais do ano passado que não se lhes ouve palavra. Em boa hora o fizeram os juízes pois caso contrário o amigo Joaquim mais a tapeçaria que lhe servia de enquadramento já tinham tido ordem de despejo. Confesso que tenho pena de estar privada daquelas leituras arrasadoras do juiz Cura Mariano mas tenho fé que elas voltarão a iluminar o país mal acabe a paz gloriosa introduzida pelo jogo da vermelhinha. Sim, porque mal se desfaça o arranjo da vermelhinha o jogador e seus cúmplices voltarão a ressurgir como arautos de todas as inconstitucionalidades, dores e injustiças. Sim, porque o jogo vai acabar. Como? Exactamente como no jogo da vermelhinha: alguém – o dono do jogo e os cúmplices ou apenas um deles – vai gritar “Fujam! Vem aí a polícia!”. Ou seja a UE e os credores. Ao primeiro grito, o jogador e os seus cúmplices põem-se a milhas. Fazem contas ao ganho e depois voltam como se não se conhecessem de parte alguma: Quem? Eles, parceiros de Governo? Até nem se podem ver!

O quando e o porquê são neste momento as incógnitas. Ou talvez não. Na página 12 do Plano Nacional de Reformas (ou 40 do Anexo) está a única reforma introduzida por este plano. Que reforma é essa: a regionalização. Na secretaria, claro. Porque em referendo foi chumbada. Agora chega-nos à socapa, como facto que nem vale a pena discutir, envolto na linguagem da “Modernização do Estado e da Promoção da legitimidade democrática das CCDR e reorganização dos serviços desconcentrados e alargamento da rede de serviços de proximidade”. Por outras palavras avança-se com a eleição directa dos presidentes das actuais Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Quando? “previsivelmente em 2018, após as eleições para as autarquias locais, a realizar em 2017”.

Note-se que as oligarquias corporativas do regime, de direita e esquerda, tão irritadas coitadinhas que ficaram com a bisbilhotice da troika aos seus hábitos, vêem nesta regionalização de secretaria uma oportunidade de ouro: criando-se, sem discussão, mais uma camada na administração, acrescenta-se-lhes o poder e os proventos. Entrevejo poucas alterações mais desastrosas para Portugal que esta regionalização, produto dos partidos e para servir o pior que existe nos partidos.

Mas esta reforma, além de um desastre para o país, é também o momento “vermelhinha” introduzido pelo Governo neste plano. Como vai reagir o Presidente da República a esta regionalização de facto? Aqui não pode dizer que o decisivo é a opinião de Bruxelas. Não sei se o dono do jogo – António Costa – conta exactamente com isso (e também com a fractura que este assunto traz ao PSD, onde Rui Rio se posiciona já para ser o primeiro presidente do norte) para finalmente poder gritar “Fujam. Vem aí…”

Ver bloqueada pelo PR (quando por fim se sentar) ou pelo TC (se este despertar) esta sua reforma, ou contestada pela opinião pública (se esta perceber o que está em causa) esta espécie de regionalização versão facto consumado é motivo mais que suficiente para que Costa se desembarace do jogo e dos cúmplices. Afinal a vermelhinha é um jogo lucrativo mas que não se pode fazer durante muito tempo – a dado momento já todos os truques são conhecidos – e depois tem aquele pequeno detalhe de o jogador precisar de se aliar a más companhias que, não fazendo nada de jeito, exigem igualdade na hora de repartir o quinhão.