Dezoito anos e uma certeza sem dúvidas fecham o mundo. Isto matou Samuel Paty.
O fundamentalismo é directamente proporcional à ignorância. Não são as religiões que matam, o que mata é a percepção do mundo quando a visão se afunila para se auto-confirmar: na família, na comunidade, nas franjas extremadas da religião e da política, no algoritmo servil onde se reproduzem num perverso jogo de espelhos as próprias convicções.
Em nenhum momento da nossa história tivemos, como hoje, acesso à informação e ao conhecimento. Mas não aprendemos a gerir o acesso a esta informação e conhecimento. Passámos do acesso passivo, dos conteúdos debitados na academia, na imprensa e restante media, onde nos era oferecido em simultâneo o exercício do contraditório fosse sob a forma de debates, títulos concorrenciais, oponentes inequívocos e representantes desta e da outra facção, ao acesso interactivo com total ausência de crivo – paradigmático das redes sociais. Estas substituem-se aos media, porém sem ética, sem responsabilização, e ao serviço de um eu totalizante.
O pai de um aluno, agora suspeito de ligações islamitas, colocou nas redes sociais uma falsa informação: o professor de História e Geografia, Samuel Paty, teria mostrado, em sala de aula, uma imagem de Maomé nu. Sem contexto, verificação ou crítica, este post incentivava à indignação, ao ódio, à vingança. Foi bem sucedido.
Samuel Paty não mostrou imagens de Maomé nu. Deu uma aula, planeada e pré-anunciada, sobre liberdade de expressão usando como referente Charlie Hebdo, e tendo tido o cuidado de autorizar que os alunos cuja sensibilidade religiosa os impedisse de assistir, se retirassem. Isto é cidadania. O exercício efectivo de valores laicos, democráticos, republicanos. Valores axiais da Europa e do mundo ocidental. Como disse Macron sobre Samuel Paty no seu elogio fúnebre: (…) «decidiu ensinar os seus alunos a converterem-se em cidadãos, assumir os seus deveres e a liberdade para os exercer.»
Um post isolado ateou um rastilho de consequências imprevisíveis e em cadeia. Execução. Prisões. Uma mesquita encerrada. O endurecimento da extrema-direita. A radicalização islamita. O paradigma da auto-confirmação.
A Europa que hoje temos é, antes de qualquer outra coisa, humanista. Uma ideia republicana de liberdade e igualdade, assente em princípios democráticos, e por isso respeitadora das diferenças individuais. Porém nenhum destes valores implantados e tidos como seguros, está, de facto, garantido, como a morte de Samuel Paty demonstrou. E a forma de os garantir é honrando os valores que ele defendeu. Porque a uma tragédia destas é preciso atribuir o justo significado.