Quando o céu nos caiu em cima estava um dia azul. Límpido e fresco. Era um daqueles dias de Setembro em que se recomeça depois das férias.

Trabalhava no Centro de Estudos Egas Moniz, no Hospital de Santa Maria, e na altura estava no oitavo andar, na sala de reuniões do Laboratório de Linguagem a rever uns processos. Preparava uma comunicação para o segundo congresso internacional de demência vascular que iria acontecer em Outubro, no Chipre. A tarde estava no princípio, ainda tinha tempo, e sabia que iria terminar o dia no jantar de aniversário de uma amiga. Seria um dia feliz.

Estava pouca gente no Laboratório e estranhei a quantidade de telefonemas que comecei a ouvir. “A América está a ser atacada!”, anunciou a secretária. Há frases que não conseguimos perceber, não cabem no nosso entendimento do mundo. A América a ser atacada não fazia sentido. Mas a secretária insistia. “Estão a dar em directo!” Havia uma televisão na enfermaria de Neurocirurgia. Fomos para lá. Enquanto ia pelo corredor, lembro-me de ter pensado no episódio da Guerra dos Mundos, quando Orson Wells levou milhares de ouvintes a acreditar que a Terra estaria a ser invadida por estranhas criaturas vindas de Marte.

As imagens passavam repetidamente na sala da enfermaria: as duas torres do World Trade Center recortavam o azul claro do céu; um risco de fumo e labaredas tapava os últimos andares da torre norte depois de um avião comercial ter embatido contra ela – parecia um acidente.  Até outro avião ter embatido na torre sul. A América percebeu. Nós percebemos. Nos minutos seguintes, a torre sul implodiu. O relato de outro avião caído no Pentágono confirma o inacreditável. O edifício norte desmorona-se.

A América percebeu. Nós percebemos. A democracia percebeu. O castelo inexpugnável reduziu-se a pó e cinzas. Já nada é inatingível. O país forte, protegido pela sua própria geografia, o nosso garante da liberdade e da democracia, foi metódica e exemplarmente atingido no seu coração político e financeiro por um punhado de crentes nas virgens prometidas.

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Enquanto, decerto, a Al-Qaeda celebrava o sucesso do ataque, o cinzento foi cobrindo o azul límpido da baixa de Manhattan: cinzento cimento, cinzento aço, cinzento pó e cinzas. E em choque, o mundo percebe-se vulnerável e em perigo.

Nesse dia não houve festa de aniversário. Também não houve congresso. Em solidariedade com os norte-americanos, que não poderiam estar presentes, foi cancelado.

Todos sabemos onde estávamos no dia 11 de Setembro de há vinte anos. Hoje não sei se todos sabemos onde estamos mas o alvo escolhido continua a ser a democracia.