E tudo fica igual na noite escura de todos os encantamentos efémeros”, Francisco d´Eulália, em Cadernos I – Eu Também Sou Tudo Isto

No sábado fui à Feira do Livro, passear, comprar, reencontrar amigos no meio da imensa multidão. O pretexto foi o lançamento de um pequeno Caderno com o título Eu Também Sou Tudo Isto, de uma pequena editora, a Âncora, de um autor talvez menos conhecido, Francisco d´Eulália, que é como quem diz, do Professor José de Faria Costa. Grande homem do Direito, mas sobretudo homem de várias letras e artes, o Professor Faria Costa mostra-nos nos seus “Cadernos”, em poucas páginas, que a melhor forma de resistir ao devir do tempo continua a ser, hoje como no passado, não prescindir de pensar.

Desde pequeno que vivo rodeado de livros, já que os esforços educativos do meu pai foram maioritariamente mediados por livros. Tudo começou quando tinha uns seis anos, no final dos anos 70, dia em que, a caminho da livraria Platero, em Pamplona, o meu pai inaugurou uma tradição semanal que durou – e cumpriu escrupulosamente – até à minha idade adulta: a compra ou a escolha de um livro. Nunca percebi se o fazia por mim, por ele, pelos dois, mas não vou negar que todos aqueles momentos são os que de uma forma mais marcante fizeram de mim o que sou hoje, sonhador e resistente. Numa época em que o tempo passava mais devagar e os estímulos exteriores não captavam a nossa atenção a cada segundo, para nos distrair, devorei tudo o que me foi oferecido e ainda o que apanhei das bibliotecas ou gabinetes onde fui parcialmente sendo abandonado até chegar a hora de ir embora ou ter de interagir com o mundo exterior. Carroll, Tolkien, Agatha Christie, Chesterton, Doyle, Camões, Cervantes, Veríssimo, Amado, Dante, Eça, Eco, Camilo, Herculano, Padre António Vieira, Pessoa, Garret, Oliveira Martins, Fernão Mendes Pinto, Capelo, Ivens, O’Neill, Cesário, Gil Vicente, Borges, Garcia Márquez, Yourcenar, Beauvoir, Austen, Twain, Andersen, Agustina, Kundera, Machado de Assis, Shakespeare, Rilke, Dumas, Balzac, Steinbeck, Hemingway, Kafka, Maugham, Huxley, Faulkner, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Orwell, Isabel Allende, Sepúlveda, Kapuscinski, Molina, Malraux, Mann, Elliot, Camus, Victor Hugo, Maquiavel, Dickens, Pepetela, Luandino, Mia Couto, Capote, Poe, Kipling, Proust, Tolstói, Dostoiévski, Goethe, Homero, Virgílio, Tennessee Williams, e tantos outros, por influência paternal; e Nemésio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Sartre, Descartes, Aristóteles, Platão, Kant, Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Jaspers, Merleau-Ponty, por influência maternal. Tive também a sorte de ler Saramago, Breton, Cesariny, Cruzeiro, Herberto Hélder, Miller, Sade, Beckett, Nabokov, Roth, autores que me foram oferecidos em jeito de provocação por alguns dos amigos do meu pai, do professor Luís de Albuquerque ao Vasco Graça Moura, que tinham, também eles, esse mau hábito de desencaminhar consciências através dessa coisa chamada “livros”. Todos estes nomes sonantes de escritores de sempre fazem parte das minhas memórias de infância e juventude, e de uma formação humanista que tanto se tem vindo a perder nos nossos dias. É pena, porque ao longo dos séculos os livros mediaram melhor do que qualquer outra tecnologia a relação das pessoas com o conhecimento e funcionaram, até prova em contrário, como o melhor veículo para fomentar a capacidade crítica, a reflexão, a autonomia individual, e o sentido de liberdade. Nada prepara melhor uma pessoa para os desafios do futuro do que ler.

Sei desde cedo que não vale a pena perder tempo com literatura menor ou iniciativas de conteúdo efémero. Como aprendi de quem sabe, as boas obras, as que têm a dignidade para serem consideradas no campo da literatura, “obras de arte”, são aquelas que tendo um conteúdo intemporal resistiram à erosão do tempo, passando a fazer parte da memória da humanidade; são essas as que devem merecer a nossa atenção.

Ler não é uma atividade fácil ou intuitiva. Implica aprender a ler, a mergulhar em cada palavra, em cada ideia, dando tempo ao tempo para viajar até outros espaços e cenários e voltar de alma cheia à realidade, fechando o nosso espaço de concentração de um mundo que cada vez menos aceita que isolemos a nossa atenção, centrados apenas em nós próprios e na relação com aquilo que aquelas páginas nos possam inspirar (e não falo apenas das redes sociais, do cinema em streaming ou jogos digitais, os donos de dachshunds sabem bem ao que me refiro).

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Mas se ler – extraindo valor da leitura – implica aprendizagem e persistência –, ler – e pensar – continuam a ser o melhor antídoto contra a incerteza e o medo. Até prova em contrário, ler e pensar sempre foram a melhor forma de acompanhar e compreender a mudança.

Por estes dias, o mesmo mundo que paralisou de medo por causa da pandemia, sacrificando-se às mãos de políticos e líderes que exibiram, nas suas ações, significativas lacunas de leitura na infância e na juventude, está de novo em suspenso perante a emergência de tecnologias que, seguramente, têm um profundo potencial disruptivo, tornando o futuro da humanidade, mais incerto. Não serei eu, seguramente, quem vai vaticinar – muito menos nos limites desta crónica –, o que nos reserva o Futuro face à emergência da inteligência artificial, pese embora essa seja uma das minhas áreas atuais de dedicação profissional.

Também vos digo que há muito tempo que o meu tempo tem pouco tempo para o mundo dos livros, absorvido que fui pelo sistema financeiro e depois pelo mundo da tecnologia, tentando sobreviver nessa arte esotérica a que alguns chamam, “gestão do risco”. A vida tem-me reservado significativas surpresas, mudanças abruptas e disrupções, pelo que até por experiência pessoal desisti de fazer grandes vaticínios sobre o que “vai ser o futuro” para não ser trucidado pelos caprichos de uma realidade que se transfigura a cada passo. Talvez por isso não pude deixar de sorrir com tristeza quando li o otimismo com que os patrocinadores da TUMO encaram a sua missão salvífica de resgatar o futuro das novas gerações através de programas de imersão criativa de 4 horas semanais. A TUMO é, para quem não vive na bolha “entrepreneur”, a mais recente iniciativa do Pedro Santa Clara, que convenceu – e muito bem – vários sponsors que, usando um método já validado e desenvolvido na Arménia, há 12 anos, é possível incrementar competências em várias áreas, como a tecnologia, a animação e a música, importantes para o desenvolvimento pessoal de crianças e adolescentes. Os centros TUMO funcionam, segundo os promotores, como um complemento às aulas. Pelo que percebi pela pesquisa que fiz, o programa é interessante e tem resultados validados. Nada contra, tudo a favor.

A forma, porém, como em 2023 esta iniciativa é apresentada, pela voz dos seus promotores, é que dá arrepios na espinha: “As competências que nós queremos desenvolver no TUMO são aquelas que nós achamos que vão ser as competências do futuro: modelação, desenvolvimento de jogos, programação, música, design, data”, diz-nos uma das principais patrocinadoras. Outros exemplos de declarações entusiasmadas como esta poderiam aqui ser citadas (o que me leva a desejar profundamente a sustância que o Pedro Santa Clara e a sua Shaken Not Stirred misturam nos cocktails que servem aos sponsors). É que no momento em que a inteligência artificial está a mudar aceleradamente as regras do jogo, pondo precisamente em causa a viabilidade de várias tarefas e profissões, como a modelação, o desenvolvimento de jogos, a programação, a música, e o design (mas também profissões em áreas legais, financeiras, e de contabilidade, e do próprio ensino), assusta pensar que ainda exista quem, em posições de liderança, acredite que o futuro se ganha, “desenvolvendo competências”, cada vez mais efémeras, em vez de se focarem nas literacias, que são aquelas que resistem à erosão do tempo.

Por isso, aos que têm filhos, crianças e adolescentes, se os querem preparar para o mundo que está para vir e para a incerteza das inúmeras disrupções que eles, mais que todas as gerações futuras, vão ter de enfrentar na sua vida, só tenho uma recomendação: inscrevam-nos na TUMO, sem dúvida, mas preocupem-se em formá-los não apenas para as competências mas sobretudo para o conhecimento fundamental, aquele que resistiu à erosão do tempo permanecendo válido ao longo de décadas e séculos, pois só assim estarão preparados para assimilar, com autonomia e capacidade crítica, as literacias emergentes, sejam elas quais forem. A todos os que querem patrocinar o futuro e reduzir as desigualdades, convido-os a acarinhar, também, aquela que tem sido a chave da resiliência da humanidade face às mudanças: a recuperação do livro e das literacias que só ele oferece. A todos dedico, no fecho desta crónica, o poema de Camões com que o Professor José de Faria Costa abriu o lançamento do seu próprio livro, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, aqui apresentado numa versão pop, mais fácil de digerir, interpretada por outro grande poeta, este da pós-modernidade: Rui Reininho.