“Nunca se mente tanto como antes das eleições, durante uma guerra e depois de uma caçada”. Esta famosa ironia é atribuída a Otto Von Bismarck, o todo poderoso “chanceler de ferro” que governou o Império Alemão na segunda metade do século XIX. Passados bem mais de um século, a grande maioria ainda tenderá a concordar com Von Bismarck. Se é certo que hoje somos mais instruídos e temos maior e mais fácil acesso à informação do que no tempo das guerras prussianas, no essencial, temos também consciência que aquela afirmação é ainda muito atual, talvez apenas com a exceção do tema da caçada ter sido, entretanto, substituído pela discussão sobre os jogos de futebol do clube do coração.

Ano de eleições é ano de promessas, interpretações convenientes, realidades floreadas e juízos de carácter sobre os outros. É tempo de fazer parecer, em poucos meses, aquilo que não se conseguiu ser ou fazer ao longo de todo um mandato. Do outro lado, é tempo de se afirmar ser alternativa capacitada e com paixão genuína, mesmo quando nunca se teve uma atitude participativa ou construtiva sobre o assunto no passado. Se há eleições, é para ganhar. A receita tradicional é simples. Se funcionou no passado, há que repetir no presente. Basta montar uma boa máquina partidária, insistir nalgumas mensagens impactantes, atrair o apoio de celebridades e o Síndrome do Pavão faz o resto.

O Programa eleitoral? Isso não interessa! Ninguém lê. Nem os próprios candidatos. É apenas um requisito formal. Pede-se a alguém mais disponível para compilar uns textos. Organiza-se simbolicamente um momento de discussão e recolha de contributos para permitir um bom cenário fotográfico de enquadramento. Contrata-se uma boa gráfica, porque a apresentação visual é o mais importante. Distribuem-se alguns exemplares para celebrar e evidenciar o momento, sendo que os restantes, a grande maioria, ficará na caixa e acabará no lixo.

Neste contexto, as eleições autárquicas são particularmente eficazes. Este ano, todo o território nacional volta a ser uma imensidão de esperança para o futuro. A campanha serve para recuperar o tempo perdido. É agora que avançam as infraestruturas essenciais há muito ansiadas, são os novos apoios às famílias e organizações, são as medidas para criação de emprego e novos negócios e todo um conjunto de outras boas notícias. Estamos todos conscientes que vários anos de PIB português não chegariam para tanta ambição, mas mesmo aceitando um enorme desconto de credibilidade, não conseguimos resistir ao deslumbramento de nos deixarmos seduzir por aquilo que gostamos de ouvir ou por contrapartidas conjunturais e convenientes.

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Como bons tolerantes que somos, aceitamos com naturalidade o primado da mediocridade e do partidarismo. É a cultura do: rouba, mas faz; é mau, mas os outros são iguais; se o partido o escolheu, é porque é bom. Há riscos? Sim, claro! Mas, não nos preocupemos. Está tudo controlado. Até para a novíssima Estratégia Nacional Contra a Corrupção, o que as autarquias necessitam é apenas aprovar Códigos de Conduta e programas de Public Compliance. Nada como bons antipiréticos para disfarçar sintomas irritantes.

Agora, tal com John Lennon, imaginem uma realidade diferente. Uma realidade onde as receitas do passado não fossem suficientes para o sucesso. Uma realidade onde o comportamento ético e o discurso transparente e realista fossem os mais valorizados pelos eleitores. Mais do que oferendas e anúncios, os eleitores preferirem clareza nas opções que se propõem para o futuro, principalmente as que são inconvenientes ou controversas. Mais do que inaugurações apressadas, os eleitores preferirem rigor na prestação de contas e conhecerem a verdade sobre a razão dos constrangimentos ou outras prioridades que condicionaram a sua execução. Mais do que personalidades mediáticas e fidelização acéfala, os partidos e os eleitores preferirem candidatos com percursos profissionais de mérito e conhecimento efetivo dos territórios. Sim, acredito que há espaço para valorizar na política a integridade e transparência. Sim, “podem dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”.

Proponho que façamos este ano uma primeira tentativa.

Premiemos os autarcas que demonstrem capacidade, mas também transparência e efetivo interesse pela participação dos cidadãos. Os autarcas que prestam contas, cumprem com as boas práticas de governação aberta e publiquem e fundamentem as suas decisões com base em dados reais e escrutináveis e não apenas em opiniões ou sensibilidades genéricas. Ignoremos aqueles que se alimentam de fantasmas e anátemas sustentados em dogmas ou interesses corporativos e valorizemos quem demonstre ter propostas realistas, diferenciadoras e que melhor beneficiam o interesse coletivo. Saibamos distinguir listas de candidatos premiáveis a caciquismo partidário e conflitos de interesses das que evidenciam critérios de meritocracia, pluralidade e de adequação política para a governança autárquica.

Tentemos e avaliemos.

Há mais de 500 anos, o filósofo humanista Thomas More, escreveu sobre um lugar imaginário em que tudo estava organizado de uma forma justa e perfeita. Chamou-lhe um “não lugar”, ou Utopia, do grego “ou tópos”. Anos mais tarde, More viria a ser Lord Chancellor de Henrique VIII. Teve quase todo o poder, mas não conseguiu cumprir a sua Utopia. O Rei cortou-lhe a cabeça e tudo ficou como antes.

Hoje, nas democracias, os reis já não cortam cabeças. O poder está nas pessoas. Nas suas escolhas e nos seus níveis de participação e exigência. Ainda há quem pense que não vale a pena o esforço para um voto construtivo e informado. Que as eleições são mais uma guerrilha e formalidade partidária do que uma oportunidade cívica transformadora. Há até quem acredite que é possível esperar resultados diferentes aceitando as mesmas receitas e atitudes de sempre. Mas isso não é Smart.