Quando alguém dá um abraço, até forte e apertado, convém ter o discernimento suficiente para distinguir: pode não ser um amigo. Pode ser o urso. O abraço do urso pode ser muito forte, fortíssimo até; mas não é de amigo, antes pelo contrário. O abraço do amigo conforta, o do urso mata.

Como Presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, volto a esta série de crónicas em preparação dos 900 anos de Portugal, série que serve não só para conhecermos e lembrarmos como foi, mas para fortaleceremos a consciência de eixos, pilares e capitais essenciais ao nosso próprio ser. E, hoje, é oportuno focar-nos num dos nossos mais preciosos recursos, sujeito que está a cercos e pressões, desafios e ameaças: a língua portuguesa.

Português: pilar, eixo e perímetro de um Estado-língua

Muitos historiadores definem-nos como Estado-língua, destacando a importância da língua para a nossa existência e independência consolidada. Não havia portugueses antes de haver Reino de Portugal; e o que os fez, além de se reverem no seu rei, foi falarem a mesma língua e fazerem-na uma língua própria, distinta. No seu livro mais recente, “Portugal na História – uma Identidade” (2022), João Paulo Oliveira Costa escreve:

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«Quando a monarquia portuguesa ganhou independência, ao longo do século XII, a população do reino, sobretudo a sul do Douro, já comunicava através de uma expressão arcaica da língua portuguesa contemporânea; tratava-se de um idioma claramente diferenciado do asturo-leonês e do castelhano falados a leste, e estava em fase de diferenciação da língua comum do ocidente peninsular, o galaico-português, desde o século anterior. Em 1296, D. Dinis ordenou que a documentação oficial do reino, incluindo toda a comunicação da coroa com os seus súbditos, passasse a ser registada na língua portuguesa, que era falada praticamente por todos os habitantes do reino e por quase ninguém fora dele. Antes de ser um estado-nação, Portugal foi, pois, um estado-língua.» (op.cit., p. 114).

D. Dinis foi, ele próprio, poeta e trovador, cultor dessa língua, deixando-nos «73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo, 10 cantigas de escárnio e maldizer, e ainda 3 pastorelas, num total de 137 textos», segundo a biografia de José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, em “D. Dinis” (2008) (p. 322).

Penso que ainda não fizemos suficiente justiça a D. Dinis, que “fez tudo quanto quis” – um dos nossos maiores reis, pela inteligência, visão estratégica e capacidade de governação. Resolveu os conflitos com a Santa Sé, fechou com Fernando IV de Leão e Castela (sendo regente a mãe, Maria de Molina) a última definição da fronteira oriental de Portugal (Tratado de Alcañices, 1297), povoou essa fronteira e equipou a sua defesa, outorgou dezenas de cartas de foral, fundou a Marinha, criou a Universidade e oficializou a língua de Portugal. Mostrou agudo propósito nacional, como aponta António Resende de Oliveira, no “Portugal Medieval” (2023), que escreveu com João Gouveia Monteiro:

«Admitindo que as razões de tal promoção [da língua vulgar do território] não se afastariam muito do enquadramento sugerido por [José Mattoso], poderemos talvez dizer que a medida visou dois objectivos complementares: a assunção da diferença perante as restantes línguas peninsulares, em particular perante o castelhano, e, ao mesmo tempo, a uniformização político-administrativa interna sugerida pela difusão do galego-português por outros documentos saídos da corte.»  (op. cit., p. 99).

Esta língua evoluiu até ao português moderno, escorou o Estado e moldou a Nação, viajou pelo Mundo com os Descobrimentos, plantou-se nos cinco continentes onde definiu e uniu outros territórios, tornou-se uma língua global, internacional, exprimiu-se em leis, romances, história, ciência, poesia, pensamento, cultura, modo de ser e sentir, identidades, com tantas variantes quantos os seus países, lusófonos. Não esqueçamos o início e o seu porquê: “assunção da diferença perante as restantes línguas peninsulares, em particular perante o castelhano”.

Esta nossa língua celebrou 800 anos em 2014, contados do testamento de D. Afonso II, de 1214. E, colectivamente, estamos a entrar nos 900 anos do país que a gerou: Portugal. São realidades formidáveis. Incontornáveis.

A ameaça da Iberofonia

Em 23 de Julho, o ABC, de Madrid, publicou um artigo de opinião de Frigdiano Álvaro Durántez Prados, intitulado “La Corona y la iberofonía”. O texto conclui com uma frase que é também o lead: «São bastantes os sinais, sem mencionar sequer os muitos que vêm de outras fontes, dirigentes e fóruns como as próprias Cimeiras Iberoamericanas, que indicam que algo importante se está a movimentar em favor da cooperação mais estreita entre o conjunto de nações iberofalantes do planeta, espaço que podemos definir como a nova comunidade histórica de Espanha.»

O artigo coloca Felipe VI e a Coroa espanhola no lugar central da promoção da Iberofonia. Espero que não seja verdade. Desejo que não passe de um impulso oportunista dos que se aproveitam da figura do rei para dar vento a uma política inadequada, inconveniente, até hostil. Voltarei ao tema em breve. Neste espaço dos 900 anos de Portugal, devo, quanto possível, limitar-me a uma abordagem histórica.

O conceito da Iberofonia – tão engenhoso, quanto ardiloso – é uma ideia que tem vindo a ser soprada e trabalhada, sobretudo no quadro da Comunidade Iberoamericana e seus ramos, desde há cerca de uma década. Basicamente, para nos engolir – e, de caminho, engolir também a CPLP. O conceito mete tudo no mesmo saco, para aumentar e ampliar o poder do miradouro de Madrid – “somos todos o mesmo”. A assinatura “ibérica” é reveladora; e uma nossa velha conhecida.

A iberofonia é o iberismo em modo linguístico e ampliando o compasso pelo mundo fora. Procura capturar por dentro, pela alma e identidade, não escapando os outros países e territórios lusófonos e, talvez para impressionar, até os Estados Unidos da América (contando, aqui, os falantes de espanhol). Por isso, o artigo de Frigdiano Durántez Prados acrescenta: «no âmbito académico já se denomina “espaço panibérico” ou da Iberofonía e inclui o conjunto de países de língua ibérica do mundo que, actualmente, atinge quase a cifra extraordinária de 900 milhões de pessoas, o primeiro bloco geolinguístico do planeta na base da intercompreensão generalizada entre o espanhol e o português.»

O autor, principal promotor da ideia, apresentou, em 2014, na publicação da sua tese de doutoramento, um Apêndice Cartográfico com a geografia de espaços multinacionais como o da Iberofonia e outros (CPLP, Francofonia, Commonwealth, Império Russo, etc.). O Apêndice tem um pormenor muito revelador: o mapa que antecede os da Comunidade Iberoamericana e do “Espacio Multinacional de Países de Lenguas Ibéricas” é o do “Imperio de la Monarquía Hispánica (1580-1640/68)” – isto é, exactamente o período que chamamos de Dominação Filipina, sendo os anos 1640/68 os 28 anos de guerra que levámos a ver-nos livres do rei espanhol e a consolidar a Coroa de novo em rei português. É sintomático. Consigo imaginar o grito triunfal, em ibérico evidentemente: “¡Felipes! Hemos vuelto. ¡Más allá que nunca!”

Não brinquemos por favor. São memórias e lições históricas que tomamos a sério. Sofreu muita gente.

Iberofonia – balão vazio, mas perigoso

Iberofonia é, em rigor, um conceito falhado, inepto para se impor. Por uma razão simples: ninguém fala ibérico. O ibérico não existe, é uma invenção fantasiosa. Sim, há as línguas latinas. Mas houve o latim, de que derivaram. Do “ibérico” não nasceu ninguém. Nem ele sequer. Não existe. Nunca existiu.

Os textos reconhecem, por isso, a Iberofonia como neologismo, isto é, uma palavra inventada agora, sem densidade, nem antiguidade. Não tem a nossa antiguidade portuguesa; assim como, é claro, não tem também a de Espanha. Mas é inventada para quê? É inventada para alimentar uma miragem mobilizadora, que nos leva ao engano. Para servir o poder de alguém, como todas as miragens políticas. E esta miragem o que procura é uma reorganização política do espaço.

À partida, o espaço geográfico arrebanhado não passa de uma açorda, sem contiguidade geográfica, nem mútua pertença, sem identidade própria, nem base histórica bastante. E sobre essa açorda pseudo-ibérica procura afirmar-se (atentemos bem nas palavras e nos conceitos do artigo no ABC) “o primeiro bloco geolinguístico do planeta” e “a nova comunidade histórica de Espanha.” Nada mais, nada menos do que isto mesmo: o primeiro bloco a nível mundial; ao serviço de Espanha.

Retomemos a postulação inicial de Frigdiano Durántez Prados: «el conjunto de naciones iberohablantes del planeta, espacio que podemos definir como la nueva comunidad histórica de España.» É preciso ser absolutamente claro a este respeito: não fazemos parte da comunidade histórica de Espanha. Tirem daí o sentido.

Continuamos sempre o caminho de D. Dinis. Iberofonia? Não obrigado.