No âmbito da sua (entretanto malograda) designação para o Tribunal Constitucional, a posição defendida pela magistrada Maria João Vaz Tomé em matéria de interrupção voluntária da gravidez – fazendo fé nos termos noticiados na imprensa – é uma posição moderada e em linha com a prática jurisprudencial.
Com efeito, a posição segundo a qual, nesta matéria, está em causa um direito à autonomia da mulher em conflito com a vida do embrião foi defendida em 2010 pelo Tribunal Constitucional português, pela mão do conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, futuro presidente do órgão e insuspeito de radicalismo “pró-vida” (v. Acórdão n.º 75/2010).
E, no caso do Supremo Tribunal americano, nunca foi posto em causa que o “direito à privacidade” (no qual se enraizou, na sequência da decisão Roe vs. Wade, o “direito ao aborto”) não pode ser considerado sem limites, designadamente aqueles que se prendem com a proteção da vida intrauterina. Veja-se a este respeito a decisão Planned Parenthood vs. Casey, que reconheceu “o interesse relevante do Estado em proteger a vida da criança não nascida”. Note-se bem que esta decisão foi tomada em 1992 na linha da decisão Roe vs. Wade e, portanto, antecedeu em décadas a reorientação do Supremo Tribunal Americano nesta matéria, evidenciada na recente decisão Dobbs vs. Women’s Health Organization.
Apenas por inexplicável ignorância ou radicalização ínvia se pode considerar quem defende a mencionada posição como inadequada ao exercício das funções de juíza do Tribunal Constitucional. Na verdade, “proibir” que se fale tão pouco em ponderabilidade do “direito à autonomia da mulher” com o “direito à vida” significa, na prática, forçar a que a interrupção voluntária da gravidez seja admitida em qualquer prazo, porventura muito para além da viabilidade do feto.
É muito grave que, no exercício das suas funções de designação de juízes para o Tribunal Constitucional, o Parlamento português se encontre contaminado por visões que, repito, apenas se podem explicar por ignorância ou radicalização, em termos inteiramente avessos àquela que é a prática jurisprudencial.
Não interessa para este efeito discutir se o direito constitucional admite um “direito à autonomia da mulher” relevante para este efeito ou se a interrupção voluntária da gravidez pode ser admitida com outros fundamentos, que se prendem com a definição dos meios ajustados à proteção da vida (esta última, sim, um inquestionável valor constitucional), os quais não têm necessariamente de ser os meios próprios do direito penal.
Pós-escrito: Agradeço ao Observador a publicação deste texto. Enviado ao jornal Público, a solicitação foi ignorada, ao contrário do que tem sido a prática com outros textos meus, e sem que até ao momento o mesmo jornal tenha publicado qualquer texto com posição próxima da que foi aqui defendida (ao contrário do que sucede com o Observador, v. o artigo de Pedro Vaz Patto intitulado “Pensamento Único”). A lei do silêncio que se pretende impor neste tema terá tido esta outra manifestação?