Tem-se generalizado a ideia de que em Portugal vigora uma democracia parlamentar em que o Governo emerge da maioria parlamentar e o chefe de Estado não assume um papel constitutivo na formação de governos. E de facto, a prática do sistema português tem sido essa, com uma ou outra irregularidade a que se regressará adiante. O que importa sublinhar, por ora, é que a estabilização desta prática se deu no quadro de um acordo tácito entre os dois maiores partidos em deixarem-se reciprocamente governar quando obtivessem mais votos nas urnas e maior representação parlamentar.

Aquela prática de regime permitiu, depois do traumático período revolucionário, assegurar a governação pelos partidos moderados. E permitiu do mesmo modo neutralizar politicamente o Partido Comunista Português. Na verdade, a ideia de que o Partido Comunista só agora se disponibilizou para formar uma “maioria de esquerda” é, em grande medida, uma falsificação histórica.

Logo em 1976, o Partido Comunista esteve disponível para ler os resultados eleitorais como base de uma maioria absoluta de esquerda. Foi o Partido Socialista que recusou essa leitura, funcionando como “fronteira” de uma democracia de tipo ocidental. Sendo que isso foi confirmado em 1987, quando o Partido Comunista se disponibilizou novamente para formar uma maioria de suporte a um Governo de esquerda, agora em conjunto com o PRD. Ainda hoje é pouco claro se a recusa dessa disponibilidade se deveu ao então líder socialista (Vitor Constâncio) ou ao líder histórico Mário Soares, então Presidente da República. Seja como for, por recusa socialista, a tentativa de formação de uma maioria de esquerda terminou com a dissolução da Assembleia da República.

O que se confirma, em qualquer caso, é que o funcionamento na prática do sistema de governo como sistema parlamentar (ou como sistema em que o Governo emerge da maioria parlamentar, relativa ou absoluta) compreende-se no quadro de uma convenção de regime e de um acordo implícito entre os dois maiores partidos.

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Foi essa convenção e foi esse acordo que foram agora quebrados. Ora, este inesperado estado de coisas tem como efeito catapultar o Presidente da República para uma posição central. Na verdade, quebrada a dita convenção, desapareceu o quadro concretizador da Constituição no que ao sistema de governo diz respeito. E é importante frisar que os sistemas de governo não se desenham estritamente no âmbito do texto constitucional, o qual pode ser lido e concretizado de muitas maneiras diferentes. Os sistemas desenham-se, sim, no âmbito da prática e das convenções que vão sendo estabelecidas.

Assim, e num quadro em que as convenções foram quebradas, é bem possível que o nosso sistema – suscetível de ser lido como sistema semipresidencial – deixe de ser lido e aplicado como de um sistema parlamentar se tratasse no que toca à formação de governos. Num característico sistema semipresidencial, recorde-se, o Presidente goza de legitimidade democrática direta, podendo ler os seus poderes como poderes efetivos, incluindo os poderes de constituição de governos.

Em consequência, as soluções governativas resultam caracteristicamente de um acordo entre o Presidente e a maioria parlamentar. E, deste modo, se o Presidente não pode impor um Governo à Assembleia, a maioria parlamentar também não pode impor um Governo ao Presidente.

Ora, não é impensável que a Constituição portuguesa passe a ser lida deste modo nas circunstâncias presentes. Repito: se, em Portugal, o sistema de governo não tem sido lido como caracteristicamente semipresidencial, tal deveu-se à persistência de uma prática estável e de um correspondente acordo dos dois maiores partidos. Varridos estes fatores, o papel presidencial na formação de governos pode emergir. E tal não será desconforme com o texto da Constituição.

O Presidente da República evidenciou já ler o seu poder de nomeação do Primeiro-Ministro como um poder efetivo. Ao nomear o atual Primeiro-Ministro, vincou a sua aversão a uma solução emergente de uma “maioria de esquerda”, a qual qualificou como “inconsistente” e como discordante com os resultados eleitorais. Mas como bem sabemos, o Governo empossado viu o seu programa rejeitado na Assembleia da República.

Ora, neste cenário, restam ao Presidente três hipóteses. A primeira hipótese traduz-se em manter o Governo demitido em funções – então em meras funções de gestão – até que seja possível dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Sucede no entanto que, como também sabemos, a dissolução só será possível a partir de abril de 2016. E sabemos ainda que têm sido colocadas dúvidas sobre a constitucionalidade de se manter um Governo demitido em gestão durante um período tão largo de tempo, designadamente pela voz autorizada do Professor Jorge Miranda.

Com todo o respeito, a inconstitucionalidade de um Governo de gestão nestas circunstâncias não é certa, não se inferindo expressamente da Constituição, a qual é pois suscetível de outra leitura por parte do Presidente, o seu único intérprete relevante no momento. De uma forma ou de outra, o que se volta a atestar aqui é a relevância do poder de dissolução enquanto arma do Executivo face ao Legislativo, arma cuja paralisação abre caminho à turbulência nas assembleias. De resto, caso a manobra parlamentar da esquerda vingasse, culminando na formação de um Governo socialista, estaríamos a assistir à decadência do nosso sistema de governo, convertido em sistema de assembleia, próximo da infeliz experiência da I República.

Se excluída a hipótese de permanência de um Governo demitido em gestão, abrem-se duas opções ao Presidente: empossar um Governo de iniciativa presidencial, que porventura funcione como Governo de transição até que seja possível a convocação de novas eleições parlamentares, ou viabilizar um Governo apoiado pela pretensa “maioria de esquerda”.

A opção por um Governo de iniciativa presidencial, sem sedimentação na prática constitucional portuguesa, sujeitar-se-ia, no entanto, a um fracasso parlamentar perante a maioria negativa de esquerda. Pelo que o que resulta mais provável é a hipótese de um Governo apoiado pela mesma maioria. Esta última solução, não se encontra, no entanto, ainda garantida. E a meu ver, não é constitucionalmente obrigatória. Nem é induzida por qualquer prática parlamentar ou parlamentarizante, pois, insista-se, essa desenvolveu-se noutro contexto e no âmbito de convenções que foram quebradas.

Não é de excluir, neste cenário, que o Presidente faça depender a investidura de um novo Governo de esquerda de condições, desde logo de condições de ordem estrutural que se prendam com a sua composição. Nomeadamente será legítimo ao Presidente exigir que a proclamada “maioria de esquerda” dê mostras de funcionar efetivamente como maioria positiva (até agora a mesma funcionou meramente como maioria negativa, não sendo tal desmentido pelas forjadas “posições políticas comuns” assinadas “sequencialmente” em “momentos individualizados”). E poderá bem o Presidente entender que tal demonstração só se clarificará por via do assento dos correspondentes membros em Conselho de Ministros, corresponsabilizando-se pelas políticas adotadas e solidarizando-se efetivamente pela sorte do novo Governo.

Caso imponha tal solução, o Presidente não estará apenas a agir no gozo da legitimidade democrática direta que tem e que é paralela à da Assembleia da República. Estará também a obedecer ao principal critério de formação de governos que a Constituição determina: os resultados eleitorais. Na verdade, para se inverter uma maioria relativa expressiva no âmbito desses resultados eleitorais, impõe-se que a mesma seja superada por uma maioria positiva ainda mais expressiva, a qual possa de modo sólido e consistente formar uma solução governativa. Só então, de resto, ficará claro se verdadeiramente se quebraram “muros” ou se, pelo contrário, se construiu apenas uma “muralha de aço” contra a maioria emergente de eleições.

Acrescente-se ainda que, caso o Presidente opte por tal solução, o mesmo estará a obedecer àqueles precedentes que, na prática do nosso sistema de governo, constituíram irregularidades no funcionamento de um sistema tendencialmente parlamentar. Nomeadamente, o precedente de 2004, em que o Presidente Jorge Sampaio impôs condições, então sobretudo programáticas, ao Governo Santana Lopes. Ainda mais importante, o Presidente estará a obedecer ao seu próprio precedente, fixado em 2013, quando fez depender a continuidade do I Governo Passos Coelho da continuidade de membros do CDS no Conselho de Ministros.

E contra isso, a dita “maioria de esquerda” não terá fundamentos para se recusar a negociar a sua solução governativa com o Presidente, invocando a sua base parlamentar. Desde logo, porque essa base não existe ainda como sólida base positiva e de formação de Governo. Ademais, a maioria de esquerda, não poderá plausivelmente invocar em seu favor uma tendência parlamentar do sistema que, como vimos, se sedimentou num contexto diferente, no quadro de um entendimento entre os dois principais partidos que agora foi quebrado.

Mudados os tempos, podem bem mudar-se as vontades do Presidente.

Luís Pereira Coutinho é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa