Eram três da manhã e estava encostado à parede que sustenta um daqueles lugares “última batata do pacote, durante uns meses”. Tinha muita gente bem vestida à minha volta e quase que se conseguiam sentir os perfumes das pessoas que passavam perto, não fosse pelo fumo dos cigarros. E, de repente, “puf”. A pessoa com quem estava a conversar atira aquela beata marota para o chão, numa vírgula da conversa, e continua a contar uma história qualquer. Deixei de ouvir. E disse-lhe, rindo, que já não faz sentido mandar cigarros para o chão. “Tens razão, tens razão – juro que nunca faço isto”. Apanhou o cigarro e atrapalhadamente procurou por um copo vazio no parapeito da janela. Pronto! Resolvido. “Então, estava a dizer…”

Mas eu já não estava ali. Enquanto acenava com a cabeça e repetia a última palavra de uma frase aleatoriamente escolhida de modo a não parecer que a minha cabeça estava noutro sítio qualquer, a minha cabeça deambulava por esse outro sítio qualquer: “Isto já não faz sentido. A pessoa sabe que isto não está certo. Mas faz na mesma. Porquê?”

No princípio deste ano, vi pela primeira vez as montanhas que guardam a cidade hotel de Sharm El Sheik. É uma cidade que funciona ao ritmo das luzes azuis e vermelhas que piscam nos bares gritantes ao som do pop mais pop que o ouvido humano consegue suportar sem convocar uma greve para todo o sempre. Nas suas ruas, há turistas de toda a parte. Mas todos têm algo em comum: a partir das 21:00, estão bêbados. É um lugar que tem tudo para estar sujo. E, no entanto, a barreira de coral mais maravilhosa que já experienciei na minha vida é logo ali. Peixes maiores que eu e lesmas coloridas microscópicas olham-se por entre as anémonas ondulantes que se agarram às bancadas de mil formas e não parece real que nenhuma delas seja a do plástico amarrotado de uma garrafa. Como? No hotel onde eu fiquei, todos os dias, saiam para o mar pelo menos 40 mergulhadores. São centenas todas as semanas, nas centenas de hotéis que bordejam a orla do Parque Nacional Ras Mohamend.

Faz-se o que se deve fazer quando isso contribui para nos encher a carteira.

Algures pelas quatro da manhã eu continuava encostado à parede desse lugar “última batata do pacote, durante uns meses”, quando o tema de eu ser o polícia das beatas veio parar à mesa. Àquela mesa imaginária que os lugares-última-batata-do-pacote têm encostada à parede que os sustenta. Sou mundialmente famoso (dentro do meu grupo de amigos) no que toca a julgar quem pratica este hábito. Rimos todos de mim até que alguém contou uma história curiosa: sobre um polícia! Um polícia dos cigarros. A multa foi paga (fiquei surpreendido e orgulhoso do meu outro país) em reais. Em Ipanema, pelos vistos há quem combata o peteleco nefasto da poluição não com olhares julgadores mas com o poder coercitivo.

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Não se faz o que se deve fazer quando isso contribui para nos esvaziar a carteira.

Funciona: incentivar a que pescadores que comercializam barbatanas de tubarão prefiram levar turistas a nadar com mantas ou a ver peixinhos no fundo do mar é política em muitos lugares. Multar os que continuem lançar cruelmente tubarões incapacitados ao mar também funciona. E funcionam muito bem em conjunto.

Então é isso: Para resolver os problemas do mundo basta transformar tudo em economia e distribuir montanhas de multas, certo?

Acho que não. Chega até a entristecer-me pensar que a humanidade só se comportaria de certa forma se a carteira o ditasse. E talvez seja nessa tristeza que possamos encontrar o argumento que refuta esta hipótese. Explico: para quem não sabe, eu sou um ser humano. E porque eu fico triste com o facto de nem tudo ser coerção e incentivos, é possível que não esteja sozinho e provável que exista algo mais profundo que nos move. Creio que partilho com o resto da espécie algo que nos pode deixar tristes quando não gostamos de determinada situação ou realidade. E esperançosos, quando ocorre o contrário.

Princípios. São difíceis de medir. Não só em questionários inconvenientes pela rua mas dentro de nós próprios. Costumam andar à pancada uns com os outros e com tudo o resto que nos move. Do estilo: quero mandar este cigarro fora mas não quero passar perto do lixo porque está lá aquela pessoa com quem me enrolei na semana passada. Há um conflito entre o que está certo e o que me convém. Dependendo da força de quem puxa a corda, ora ganha um lado, ora ganha o outro.

Mesmo valores que vivem fora da nossa carteira podem sair a ganhar.

Mas… de onde vêm os nossos valores? “A família, a escola, o tio Manuel que tomava conta de mim no café, a Telev…” Influencers!

Calma – também odeio a palavra. Não tenho como ouvir a expressão no meu cérebro sem que ecoe numa voz de miúda histérica com 16 anos: “Influéncer”.

Que som do mal.

E portanto não será surpresa nenhuma quando digo que odeio quando me chamam “isso”.

Durante os últimos anos, o meu trabalho tem sido o de contar histórias que partem da busca de ondas para encontrar outras coisas (cultura, história, pessoas…). Algumas pessoas acompanham e até parece que gostam. Sendo que uma das plataformas que utilizo para que sejam contadas essas histórias são as redes sociais, as agências de publicidade que trabalham com as marcas que pagam algum do meu salário dizem que eu sou um “influéncer”.

Mas, afinal de contas, porque é que esta palavra ganhou uma conotação tão horripilante quando, na verdade, o seu significado é tão simples?

Todos nós já passamos horas a dar ao dedo enquanto nos deparamos com uma enormidade de conteúdo com pouco conteúdo. Mas a verdade, se não quisermos ser haters só porque sim, é que há gente pertencente a esta estranha espécie a fazer coisas interessantes na internet. E a outra verdade é que, mesmo sendo haters, há muita gente a ser impactada.

Quem viu primeiro foi, lá está, a carteira. A quantidade de marcas que se servem destes bichos do like são tanto aquilo que nos faz revirar os olhos quanto o melhor sinal de que os influencers podem, afinal, ser uma parte importante da solução: se o departamento de marketing de uma empresa forreta está disposto a gastar dinheiro para que alguém venda um champô com pó de beterraba das Antilhas, talvez isso significa que a voz de quem vende é uma voz ouvida.

E, por isso, trago um apelo.

A sala do Tivoli ia escurecendo quando rebentou uma salva de palmas. Eram os primeiros passos daquele que é, talvez, um dos jovens que mais admiro no mundo. Ele também não é influencer. Mas também é. Videógrafo do National Geographic, eu já seguia o seu trabalho há anos. E claro, a capacidade de contar histórias através das imagens mais bonitas impacta milhões de pessoas. Chegaria para encher a sala onde eu estava. Mas, entre as aventuras de uma vida que o Berty Gregory viveu, parece haver uma noção assumida de que ele, agora, tem um palco. E que, com esse palco, veio também uma responsabilidade.

Não há nenhuma regra inscrita nos mandamentos do Instagram que obriga a que quem fala com muita gente deve fazê-lo com responsabilidade. Menos ainda há uma regra que vá além da responsabilidade e nos faça ver que falar com pessoas é uma oportunidade que deve ser agarrada para se veicular o que achamos que está certo. Mas, lá está: princípios. Para mim, quando temos palco, não nos devemos apenas aproveitar dele. Deram-me voz para falar aqui e por isso eu gostava de convidar o influencer amoral a sair de cima do muro e vir se importar, publicamente. Não estou a falar de passarmos todos a ser ambientalistas. Mas estou a falar de, de vez em quanto, partilharmos boas práticas. Incentivarmos a boas mudanças. Se é possível transformar um carrinho de bebé ou uma pasta de dentes numa história interessante, seguramente não será difícil fazer o mesmo com ideias bonitas.

Ninguém me pagou para escrever este texto. Ninguém me multou por não o fazer. Veio da minha vontade e foi inspirado pelas palavras de alguém que, sem vergonha nenhuma, me influencia e por quem eu gosto de ser influenciado. Quem sabe, precisaremos de menos polícias das beatas se mais gente for influenciada por gente que influencia para o que realmente lhe importa.

João Kopke é um contador de histórias que utiliza o surf, a sua formação artística em música clássica e a sua formação académica em Ciências Políticas e Relações Internacionais para criar conteúdos. Juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2020.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.