“Watson, we have a problem!”
Lançada em 2015, e depois de biliões em investimento, no início do ano a IBM anunciou a venda dos ativos da Watson Health, assumindo o fracasso do programa e relançando o debate sobre o futuro da inteligência artificial (IA) em Saúde.
Numa era de buzzwords, de revoluções digitais, e de muito dinheiro investido, a IA continua a ser copiosamente derrotada por algo que tenta mas não consegue controlar: o mundo “analógico”, real, onde as pessoas continuam a esperar anos por uma consulta; onde faltam médicos, enfermeiros, auxiliares e outros milhões de profissionais de saúde; e onde as buzzwords que ganham os pitches não entram, porque “ideias já as tivemos todos, mas o que precisamos mesmo é de um par extra de braços para meter mais este doente na maca.”
E é neste contrassenso que a maioria das iniciativas de IA esbarra: são uma última réstia de esperança para um sistema em colapso (só no ano passado ficaram 1 milhão de casos de cancro por diagnosticar na UE), mas que parece demasiado caótico para ser ajudado.
Como podemos, então, convergir para um modelo onde IA e analógico se ajudam mutuamente, melhorando a prestação de cuidados e salvando doentes?
Ao longo dos anos – e convém recordar que as primeiras experiências em IA já têm quase 70 anos – fomos aprendendo valiosas lições da aplicação da IA em Saúde, que nos permitem estabelecer algumas conclusões chave para a definição destes modelos:
A IA não substitui médicos. Apoia-os.
Somos humanos e, especialmente quando doentes, precisamos de interagir com outros humanos.
Forçar a implementação de sistemas que ameaçam esta interação, é um erro. E acreditar que a IA – sozinha – vai revolucionar o sector da Saúde e substituir quem lá trabalha é um erro ainda maior.
Impõe-se uma visão colaborativa, onde testamos o efeito da inovação ao serviço dos médicos e dos hospitais, incorporada no ecossistema real.
Porque, nos dias de hoje, já ninguém deveria querer saber se determinado sistema de IA tem maior acuidade diagnóstica do que um médico. É essa a sua função e o mínimo admissível. Os médicos são humanos, como todos nós. São incapazes de processar milhões de imagens, no espaço de poucos segundos, como qualquer bom algoritmo de IA deve conseguir fazer. As “máquinas” servem para isso. E os sistemas de IA são as “máquinas”, os “estetoscópios” do século XXI. Se um estetoscópio não coloca um médico a ouvir melhor, então de nada serve. O mesmo se passa para um sistema de IA. Se não melhora a capacidade diagnóstica de um médico, não tem utilidade. Por isso, fazem pouco sentido as análises comparativas entre médicos e máquinas. O que queremos verdadeiramente saber é o que consegue o médico fazer, a mais, com aquela máquina. Impõe-se esta mudança de paradigma, onde o médico vê a solução de IA como mais uma ferramenta de auxílio – e não como um competidor direto que o substituirá – pois sem colaboração local, no terreno, continuaremos a ter ótimas soluções “no papel”, mas incapazes de chegar aos doentes.
Precisamos de mais realismo e de menos contos de fadas.
A maior parte da inovação em Saúde é financiada por capital de risco. E se esta mistura de startups, saúde e investidores arrojados tem potencial para revolucionar o mundo, tem também todos os ingredientes para continuarmos a gastar milhares de milhões de euros sem que nunca consigamos ajudar os nossos doentes.
Veja-se o caso de Elizabeth Holmes, uma adolescente de 19 anos, que desistiu da faculdade e fundou uma startup com a promessa de revolucionar o sector das análises de sangue. Ganhando a aura de nova “Steve Jobs”, tornou-se na mais nova bilionária de sempre, com uma fortuna que chegou a estar avaliada em 4.5 mil milhões de dólares. Acabou condenada na justiça, falida e sem um único teste de sangue validado para amostra.
Mas o que leva um setor a investir mais de 700 milhões de dólares numa jovem, sem provas dadas do seu produto e sem que ninguém tenha sequer visto o seu laboratório? O hype. A mistura explosiva de um sector com muito dinheiro, dominado por quem não tem um entendimento profundo sobre o ecossistema em Saúde, mas que alimenta um universo paralelo de fundadores de unicórnios que vão salvar o planeta, mas que nunca chegam aos nossos hospitais.
Precisamos de mais realismo, de “descer” à terra, e de apostar mais em soluções exequíveis e que dão respostas aos desafios do terreno. Primeiro o simples, o viável, o que ajuda a salvar doentes. E só depois, o resto.
Só juntos conseguimos vencer. E a inércia médica é o grande inimigo.
A indústria da IA e dos medical devices, mesmo depois de plenamente instalada, sofrerá dos mesmos “males” da restante inovação em saúde. Hoje em dia, um fármaco que mostre ser eficaz nos primeiros ensaios clínicos demora 17 anos até estar estabelecido na prática clínica. Esta inércia clínica é uma perfeita aberração. Que tenderá a ser ainda mais marcada com as ferramentas de IA, que implicam mudanças profundas na prática clínica, e para as quais os médicos pouco foram treinados. Como podemos, então, melhorar a comunicação da inovação em saúde e acelerar a implementação de IA?
Por certo, a resposta parece residir, como sempre, no trabalho em equipa com quem está no terreno. Nos profissionais de cada hospital ou centro de saúde, que devem liderar a implementação destes sistemas inteligentes, enquadrando-os nos seus protocolos de trabalho e adaptando-os à realidade dos seus doentes.
Importa, por isso, conseguirmos explicar a estes profissionais, que a implementação de IA em Saúde não é um capricho movido pelas startups. Com os gastos em saúde a representarem já mais de 10% do PIB mundial, com a crescente falta de médicos à escala global, e com milhões de doentes por diagnosticar e tratar, a digitalização e otimização da Saúde tem mesmo de acontecer. E tem de acontecer com todos a “puxar” para o mesmo lado. Se não há lugar aos “lirismos” de uns, também não poderá haver lugar ao pensamento sectário e adverso à mudança de outros, onde se nega a IA por preconceito, pela manutenção de um status quo que, no que toca a servir os doentes, se tem mostrado demasiado insuficiente.
Assim, por mais irónico que possa parecer, o futuro da IA na Saúde não está nas mãos de redes neuronais ou dos escritórios de Silicon Valley. Está bem mais perto. Está nas nossas urgências, no nosso dia-a-dia, e na capacidade da IA conseguir fazer parte dessa rotina diária, integrando-se no sistema pela mão das pessoas que o constituem.
Porque só desta forma, aliando a tecnologia às pessoas, a máquina ao humano, é que podemos conseguir ter um futuro risonho – com menos Holmes, Watsons ou outras personagens de ficção – mas com mais soluções inteligentes, reais, e que servem quem mais importa: os nossos doentes.
Tomás Pessoa e Costa tem 30 anos e é o fundador da “dioscope”, uma start-up de ensino e apoio à decisão clínica. Médico interno de Dermatologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central e docente na Faculdade de Medicina na Nova Medical School, foi considerado em 2020 um dos Jovens Inovadores Europeus do Ano pela WSA, iniciativa das Nações Unidas. É membro dos Global Shapers também desde 2020.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.