O princípio KISS, acrónimo de “Keep it simple stupid”, popularizado pela marinha americana em 1960, defende que a maioria dos sistemas funciona melhor quando são mantidos simples e que a complexidade desnecessária deve ser evitada.

Apesar de antigo, em alturas de absoluta necessidade como esta que infelizmente atravessamos, tende a ser inconscientemente utilizado e com ótimos resultados: fazemos o que tem de ser feito e deixamos os romantismos para depois.

No início da pandemia COVID-19, assistimos a acaloradas trocas de opinião, onde defensores do SNS de um lado, e de sistemas privados do outro, discutiam entre si quem tinha razão. De um lado, uns defendiam um SNS forte, que impedia quem quer que fosse de lucrar com a pandemia, mesmo que em prejuízo dos doentes; do outro, criticava-se impiedosamente a cegueira ideológica do governo, enquanto se tentava, efetivamente, ganhar “mais qualquer coisinha”.

Infelizmente, os dois lados foram engolidos pela dura realidade. No meio do pico da crise humanitária provocada pela pandemia COVID, face às filas de ambulâncias nos hospitais públicos e à acumulação de doentes à espera de cama, decidiu-se o óbvio: vão para onde houver vaga, e rápido.

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E assim, por momentos e no meio de tamanha necessidade, deixámos de ter público e privado, pusemos as ideologias e visões distópicas na gaveta, e voltámos ao que interessa: temos doentes e precisamos de os tratar, a todos.

Num país com um milhão de pessoas sem médico de família e onde quase 40% das consultas de especialidade no SNS ultrapassam o tempo máximo de resposta, custava assim tanto fazermos isto mais vezes?

Sejamos claros: o modelo atual não funciona. E já não é (felizmente) puramente público. Temos farmácias, laboratórios de análises e de imagem, empresas de software e de comunicações, todas privadas e a trabalharem no SNS. Se retirarmos esta iniciativa privada da Saúde, o SNS morre. E com ele morre muita gente. Mas também não podemos viver no lirismo de pensar que o Estado se pode demitir de regular com “mão-de-ferro” a atividade privada na saúde. As empresas são geridas para dar lucro, e cabe ao Estado garantir que o fazem em condições justas e que servem os interesses dos portugueses.

Se nos despirmos das discussões filosóficas sobre o SNS, a realidade é bem mais simples: temos 23 hospitais especializados, 77 hospitais gerais e cerca de 360 centros de saúde em Portugal. Não precisamos de comissões de avaliação, de planos “macro” ou da opinião dos 4 ou 5 níveis de chefias intermédias que existem para governar uma rede que devia falar a uma só voz. O que precisamos é de ir a cada um desses hospitais, ver o que se passa e falar com quem lá trabalha. Os problemas são, por incrível que pareça, simples!

Querem melhorar rapidamente o SNS? Comprem computadores, melhorem e unifiquem o registo de processo clínico, reforcem as equipas administrativas de cada serviço e aliviem os médicos e enfermeiros de fazer esse trabalho.

De nada nos serve planearmos uma revolução tecnológica na saúde, com vídeo-consultas e cirurgia robótica à distância, se os médicos continuarem metade da manhã a tratar de “papelada” e com o computador encravado, porque já tem uns “aninhos” e não estava preparado para isto.

Mas… a verdade é que esta urgência em mudar, passada a pandemia, vai ser mais uma vez esquecida. Quem tem “voz” não usa o SNS. Ou pelo menos, não o usa sem favores.

Todos temos aquele médico ou enfermeiro amigo, que dá um jeito porque a consulta era só daqui a uns meses. E se não tivermos, usamos o seguro de saúde e vamos fazer aquele exame que aqui demorava muito tempo. Não ficamos 10 horas à espera numa urgência apinhada de doentes. Não deixamos a nossa mãe 77 dias à espera de uma consulta muito prioritária de Cardiologia. Não adiamos a colonoscopia do nosso pai para daqui a mais de ano e meio. E é por isso que podemos perder esse tempo em lirismos e em ideais. Porque gostamos muito de discutir este SNS, feito para os outros.

Sim, é urgente. Sim, é importante. Precisamos de manter viva esta memória de como ficámos apavorados por precisar do SNS. De quando o usámos como se a nossa vida dependesse, literalmente, disso. Agora já sabemos do que falamos. E sabemos que temos de fazer melhor, já. A receita é simples: keep it simple stupid.

Tomás Pessoa e Costa tem 29 anos e é médico interno de Dermatologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. Antigo atleta de alta competição de Judo, em 2016 teve a nota máxima na prova de acesso à especialidade médica e fundou a “Perguntas da Especialidade”, uma empresa de formação e apoio à decisão médica, vencedora do World Summit Awards Portugal 2020. Dá aulas de Medicina na Nova Medical School. É membro dos Global Shapers desde 2020.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.