Num sistema público onde por tantas vezes nos queixamos da falta de meritocracia, o “impensável” aconteceu: o presidente do conselho de administração de um dos maiores hospitais do País, depois de um trabalho notável, foi nomeado CEO do SNS.

Parece simples, pois deveria ser sempre assim, os melhores para os maiores cargos. Mas não é. E, por isso, a nomeação de Fernando Araújo para dirigir o SNS veio como uma lufada de ar fresco. Uma luz ao fundo do túnel, que renova a esperança num sistema intrinsecamente bom – onde todos, pobres ou ricos, novos ou velhos têm acesso a cuidados de saúde – mas que teima em ser insustentável.

O CEO é médico, tem experiência de terreno e tem mostrado – além de capacidade – bom senso. A acusação de falta de “resiliência” aos médicos, feita a meio da maior pandemia das últimas décadas, e depois de um ano sem descanso e de atropelos sucessivos a vários direitos laborais, ainda está bem vincada. E as suas consequências colocam uma pressão enorme sobre a nova comissão executiva.

Um SNS que falha sob a batuta de alguém já sem crédito tem uma solução óbvia: a troca de liderança. Mas um SNS que falha sob uma ótima equipa de gestão fica sem alternativas. E é esse o grande desafio desta nossa comissão executiva. Gerir um sistema burocratizado e fragmentado, onde a sua real autonomia e atuação ainda está por definir, sabendo que é uma das últimas hipóteses de reforma para o SNS.

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Por isso, haja a coragem de lhe ser dada verdadeira autonomia, competências. De poder “mexer” no que encontra errado. Com poucos romantismos ou dogmas ideológicos. Esta comissão executiva terá forçosamente de descer das secretárias ministeriais, “arregaçar as mangas”, ouvir quem está no terreno, e pôr mãos à obra – porque só assim se pode mudar verdadeiramente o SNS.

O retrocesso dos últimos anos tem de acabar – vivemos num País demasiado pequeno para megalómanos projetos de reformulação teórica do sistema, onde se cancelam parcerias público privadas por preconceito ideológico. Precisamos de pragmatismo. De pensadores que fazem e não de sonhadores. Mas, para isso, têm de os deixar fazer e lhes dar poder para fazer.

E há muito por onde começar: doentes sem médico que esperam anos por consultas, urgências fechadas, infra-estruturas obsoletas, profissionais desmotivados… a missão nunca será fácil. Sobretudo porque quem faz parte e usa o sistema já se conformou e aceitou a sua ineficiência e eventual extinção. Os profissionais desmotivados saem e os doentes que conseguem pagar uma alternativa pagam. Ficam os mais fracos, com pouca voz, os que não se podem dar ao luxo de desistir do SNS.

E são esses que merecem que haja a coragem de começar esta mudança de rumo. Onde se premeia os melhores. Onde os líderes que vemos em cada hospital, em cada serviço, inspiram os outros profissionais. Onde são dadas condições atrativas, que fixam os bons profissionais ao SNS. E onde o medíocre não tem lugar. Onde se dá lugar a novas ideias, novos modelos e novas pessoas que pensem e façam de forma diferente. E que esta onda de mudança se transmita às administrações hospitalares, às chefias intermédias, à contratação dos jovens médicos, focada na atração e retenção de talento.

O capital humano do SNS é imenso. Todos os anos se formam mais de 1000 jovens médicos especialistas. De excelência. Disponíveis para ajudarem o SNS. Mas são desperdiçados por mapas de vagas que surgem com meses de atraso, por contratos de modelo único, que ostracizam quem gostaria de continuar a contribuir, mas noutros modelos de contratação, há muito utilizados no restante sistema privado. E os que – mesmo assim – ficam, entram num processo de carreira estanque, onde só o passar dos anos é tido em conta.

Por tal, há que mudar, premiando e dando poder a quem sabe fazer para… fazer.

Temos uma última hipótese de salvar o SNS. Haja a coragem de a aproveitar.

Tomás Pessoa e Costa tem 30 anos e é o fundador da “dioscope”, uma start-up de ensino e apoio à decisão clínica. Médico interno de Dermatologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central e docente na Faculdade de Medicina na Nova Medical School, foi considerado em 2020 um dos Jovens Inovadores Europeus do Ano pela WSA, iniciativa das Nações Unidas. É membro dos Global Shapers também desde 2020.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.