1 A espiral do silêncio

Ao longo das últimas décadas temos desenvolvido competências muito apuradas para detetar e explicar todas as limitações e problemas da democracia liberal. Mas tendemos, nesse esforço, a esquecer ou menosprezar uma das suas grandes vantagens: o princípio do voto secreto – que permite, mesmo quando as nossas opiniões são minoritárias ou consideradas inaceitáveis pela opinião pública dominante, que, ainda assim, possamos chegar à cabine de voto e exercer livremente a nossa escolha.

Esta prerrogativa fundamental levanta, contudo, dificuldades aos politólogos que pretendem não só analisar as tendências de voto, como, acima de tudo, prever essas tendências. Foi por essa razão que a teoria apresentada por Elisabeth Noelle-Neumann, em 1974, foi recebida com tanto entusiasmo: designada como “espiral do silêncio”, esta teoria debruça-se sobre o modo como as opiniões que estamos dispostos a expressar publicamente dependem da nossa perceção da opinião pública dominante. Assim, o facto de uma ideia ser maioritariamente percecionada como uma opinião errada ou inaceitável levaria a que as pessoas silenciassem as suas posições ou limitassem a sua expressão a grupos mais pequenos e concordantes.

A conclusão tem um importante peso em contexto democrático: esse silenciamento conduziria a que opiniões dominantes na opinião pública pareçam consensuais ou maioritárias, quando, na verdade, podem coexistir com maiorias silenciosas ou várias minorias silenciosas.

A teoria da espiral do silêncio enquadra-se no estudo da opinião pública e convoca contributos da psicologia social, na medida em que tenderíamos a adaptar o nosso comportamento com medo de sermos socialmente excluídos. Mas ela oferece um contributo particularmente valioso para a ciência política ao chamar a atenção para o facto de haver zonas de silêncio que não são possíveis de cobrir pela análise política da opinião pública ou pelas sondagens. E estas zonas de silêncio, voluntárias, podem dar origem a resultados eleitorais inesperados por não ter sido possível detetar essas posições.

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A noção revelou-se, nessa medida, útil para compreender a surpresa com que foi recebida a vitória de Donald Trump, em 2016, e foi aplicada em França, nas últimas décadas, a propósito da Front National: perante uma sondagem cara-a-cara ou por telefone, as pessoas teriam vergonha de reconhecer o voto em Trump ou Le Pen, mas, uma vez na cabine de voto, valeria o princípio de que “what happens in the booth, stays in the booth”.

2 O fracasso democrata

Foi, assim, curioso que apoiantes de Kamala Harris tivessem escolhido este princípio de discrição eleitoral para apelar ao voto no Partido Democrata nas recentes eleições. Os dois realizadores que compõem a equipa GRAiNEY Pictures trabalharam com os dinamizadores da plataforma Vote Common Good, direcionada para o voto católico e evangélico, e convidaram duas estrelas de Hollywood para gravar a voz dos anúncios: Julia Roberts, com um apelo ao voto feminino; e George Clooney, com um apelo ao voto masculino.

De acordo com os realizadores, o objetivo era chegar às comunidades evangélicas, onde a pressão social do grupo levaria os seus membros a votar no Partido Republicano, introduzindo a mensagem que a campanha de Kamala lançou desde o início: esta era uma corrida contra um candidato que ameaça as mulheres, pelo que os eleitores se deveriam mobilizar por esta causa fraturante e identitária.

Os anúncios tiveram um forte impacto mediático, mas a sua relevância encontra-se no facto de eles simbolizarem o fracasso democrata: o fracasso de as elites culturais não compreenderem como este tipo de mensagem se encontra coberto pelo paternalismo e arrogância elitistas que têm empurrado o eleitorado para Donald Trump.

Os últimos dias, novamente marcados pela incompreensão do que aconteceu, têm exemplificado de tal forma esse fracasso que levaram Bari Weiss e Oliver Wiseman a escrever diretamente aos seus colegas jornalistas e “democratas”:

“não se é bem-sucedido numa eleição chamando as pessoas comuns de racistas, sexistas ou estúpidas. As eleições ganham-se ouvindo-as. E a nossa elite mediática meteu a cabeça na areia. Mais uma vez. Parecem pensar que se continuarem a chamar aos norte-americanos bigots selvagens, eles acabarão por perceber a mensagem.”

Pensemos na reação já célebre da comentadora Joy Reid que, depois de ter considerado que Kamala não foi eleita por ser mulher e negra (um argumento fácil, mas impossível de provar), afirmou que

“esta foi realmente uma campanha histórica e sem falhas… A Queen Latifah nunca apoia ninguém e veio a público e apoiou-a. Ela tinha todas as vozes de celebridades proeminentes. (…) Não se podia ter feito uma campanha melhor em tão curto espaço de tempo.”

Sim, eu também tive de pesquisar quem era essa Queen Latifah. Mas é mais difícil encontrar resposta para a questão de saber em que mundo paralelo vivem estas pessoas.

3 A dissonância política

Muito se irá dizer e escrever para justificar os resultados da recente eleição e o facto de, afinal, não ter sido especialmente renhida nem terem sido necessários vários dias para se declarar a vitória. Mas um dos fatores mais relevantes é esta dissonância política das elites democratas, que levou a equipa eleitoral de Kamala a considerar que chamar, todos os dias, estrelas da música e do cinema faria a diferença – quando elas representam precisamente o afastamento do Partido Democrata face ao mundo das pessoas comuns.

Na verdade, essas pessoas, apesar de influenciarem desproporcionalmente a opinião pública norte-americana, não representam as preocupações da maioria da população: não sentem a subida dos preços com o mesmo impacto, não têm de fazer contas para gerir o salário até ao final do mês, não têm problemas com arrendamento, acesso a hospitais e boas escolas – e, acima de tudo, não sentem a ausência de esperança num futuro melhor.

A convicção democrata de que se podiam apresentar como underdogs é nesse sentido risível: os democratas têm ao seu lado as elites académicas e culturais e, em grande medida, também as elites tecnológicas e económicas. E na sua deriva de radicalismo cultural nunca poderão representar os verdadeiros underdogs. Por tudo isto, quando Kamala, no seu discurso de concessão, fala em luta, ficamos na dúvida sobre que luta é essa – tão importante, mas que disse tão pouco à maioria dos eleitores norte-americanos e, em particular, à working class.