O tema da “silly season” de 2020 foi o racismo. É um tema muito mais sério do que os seus intervenientes em Portugal o foram durante o último mês. Denúncias de ameaças a deputados e a activistas marcaram a agenda, mas é sempre difícil saber onde é que acaba a verdade e começa o aproveitamento oportunista.
O racismo não é um tema nada “silly”. Dois textos recentes apresentaram perspectivas interessantes sobre o racismo. Paulo Tunhas, aqui no Observador, explica que a extrema-esquerda e a constituição e funcionamento da “geringonça” (como os privilégios dados à Festa do Avante) actuam como fomentadores do racismo em Portugal. Esta frase sintetiza bem a mensagem: “o folclore ridículo do “Não passarão”, ameaça lançar, quanto mais não seja por pura reactividade, indivíduos pacatos nos braços de quem os prometa salvar da opressão de uma opinião selvagem e inquisitorial, da qual a falada “monitorização do discurso de ódio” é apenas a expressão mais soft“.
Num texto do “Law & Liberty” (aqui), Amy Wax escreve, no âmbito da recensão de um livro, sobre os efeitos nocivos da “affirmative action” que Portugal imita dos anglo-saxónicos, concretamente sobre as preferências raciais dadas a alguns tons de pele em detrimento de outros. Wax apresenta alguns argumentos prós e contra (não os prós e prós com que a RTP por vezes nos “brindava”) da “affirmative action” na tentativa de corrigir a discriminação contra os “negros” (frequente nos EUA) para repor uma justiça social em que teriam as mesmas ocupações, posição social e nível educacional dos “brancos”.
O problema da “affirmative action”, de acordo com Wax, é que rapidamente se transformou numa rede burocrática em constante expansão e arrogante na aplicação dos direitos civis, com “exigências cada vez mais intrusivas e onerosas sobre contratação e admissão, incluindo quotas, metas e cronogramas, … gerando oposição ressentida com consequências políticas muito significativas a longo prazo”.
Esta evolução foi agravada pelo tema da diversidade, que se tornou central na educação com a ideia de valorizar a presença de grupos minoritário (leia-se especialmente “negros”) como um “enriquecimento da experiência educativa”. A partir daqui o abuso de favorecimento das minorias tornou-se regra apesar dos resultados positivos da “affirmative action” não serem visíveis mas os custos para os que foram por ela prejudicados serem bem reais e as consequências em termos de divisionismo, de limites à liberdade de expressão ou do renascimento de tendências iliberais que “corroem” a vida intelectual serem hoje uma constante nas universidades norte-americanas.
Como refere Wax, as consequências do falhanço da “affirmative action” foram a acumulação de sentimentos de “frustração, raiva e ressentimento” que alimentam a vitimização e as acusações de racismo e discriminação generalizada, e de supremacia e privilégios “brancos”, e que hoje envenenam toda a vida política nos EUA.
São também estes preconceitos que alimentam os ataques às ideias de mérito, esforço, cultura de trabalho, empenho e responsabilidade individual como sendo as formas dos “brancos” discriminarem. É com este tipo de fundamentos que a realização de exames escolares está a ser cada vez mais limitada em diversos países, por exemplo. Foi por isso uma boa notícia que o Departamento de Justiça dos EUA tenha acusado há poucos dias a Universidade de Yale de prejudicar “amarelos” e “brancos” para beneficiar “negros” nos critérios de admissão de novos alunos, sobrepondo a igualdade perante a lei à “engenharia social”.
Para alguns esta discriminação é uma forma de racismo “aceitável”, pois assumem que se está a corrigir um erro anterior, em que os negros foram prejudicados na admissão à Universidade de Yale. Repare-se que ninguém tem evidências concretas de que este ou aquele “negro” que agora vai entrar em Yale alguma vez tenha sido discriminado. Mas isso não interessa. O que interessa é assumir que os “negros” foram sempre discriminados em qualquer lado e em todas as situações, e por isso, podem ser discriminados mais uma vez, mas agora a seu favor.
Claro que quem, como à esquerda, defende que o sexo de uma pessoa é uma construção social também pode argumentar o mesmo para a cor da pele. Eu sou “branco” mas sinto-me “negro” e agora quero ser “negro”, e por isso sou discriminado por racismo e quero entrar em Yale. Esta é a liberdade irresponsável que a esquerda promove. A candidata a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, é o exemplo mais actual da vontade de ser “negra”, mas ainda recentemente houve uma personagem nos EUA que se fez passar por “negra” para protestar contra a discriminação racial até ser desmascarada. Era “branca” como a cal.
Outros argumentarão que isso não é racismo, pois “brancos” e “amarelos” foram sempre beneficiados ao longo da história, e os “negros” foram escravizados e abusados. Na verdade, porém, é igualmente racismo. É uma discriminação com uma base biológica, a cor da pele, mesmo que essa base seja pouco relevante.
Independentemente de todas estas considerações, o racismo assenta numa ideia que está alojada na cabeça de quem é racista. Essa ideia assenta em diferenças biológicas entre raças ou entre povos, em que alguns são considerados superiores e outros inferiores, seja qual for a fundamentação para essa classificação.
A ideia pode ser errada, mas sendo uma ideia manifesta-se em primeiro lugar a nível individual, mesmo que depois possa ser usada para criar grupos com propósitos comuns. Logo a eliminação do racismo, como é muitas vezes proposto, é a eliminação de uma ideia que está na cabeça de cada um dos seus defensores.
Mas como é que se elimina essa ideia sem colocar em perigo a liberdade de pensamento? Há aqui um paradoxo claro. Quem preza a liberdade de pensamento e a coloca acima de tudo o resto, não pode concordar com tentativas de eliminação do racismo. Pode nem gostar do racismo, pode detestar só em pensar no que significa, mas não pode entrar na cabeça dos outros e querer eliminar o que de mal lá encontra. O ser racista faz parte da liberdade individual de cada um, como o faz o ser invejoso porque há uns que têm mais bens materiais do que outros, o ser egoísta, o ser oportunista, o ser demagogo, e por ai fora.
Em regimes totalitários há sempre maneira de eliminar o racismo, ou pelo menos de o tentar fazer. O “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley apresentava uma solução para esta questão baseada em fármacos que criavam uma ilusória felicidade em que o racismo era eliminado mas que faziam esquecer a liberdade. Mas esta solução imposta por outros, e por isso de características totalitárias, nega a essência da liberdade e do pensamento livre que é a ausência de coerção por terceiros. Daqui resulta que é totalitário quem quer eliminar o racismo da cabeça das pessoas, porque quer eliminar, ou pelo menor limitar, a liberdade de pensamento.
Ludwig von Mises, que detestava o racismo, apresentava-o como uma disposição social que era facilitada pela presunção socialista de que o colectivo deveria ser o senhor do destino individual. Da mesma forma, também a eliminação do racismo é uma imposição do colectivo sobre o destino individual. Impor a ideia colectiva é o pior que existe numa sociedade porque promove a desresponsabilização individual e é uma característica distintiva do totalitarismo. É a intolerância institucionalizada e generalizada, mesmo quando disfarçada sob a capa da tolerância e da diversidade (em suma, a esquerda radical), que Wax descreve e que gera as divisões e as reacções extremadas que Tunhas expõe.
Note-se que não está em causa a maldade do racismo. O racismo é uma coisa horrível que vai contra a dignidade do ser humano, um valor fundamental em qualquer sociedade civilizada. Por isso o racismo é um mal. Mas a maldade faz parte do ser humano e mesmo que a quiséssemos eliminar (eu não quero, prezo muito o livre arbítrio) não o conseguiríamos sem transformar os indivíduos em escravos, retirando-lhes a liberdade. E isso é muito pior do que o racismo, convém nunca o esquecer.
Em Portugal existe uma grande incompreensão sobre o que é o racismo e quais as suas consequências. Uma sociedade que não reconhece a cada um os valores próprios que tem o direito de seguir é uma sociedade que não respeita nem a dignidade do individuo nem a liberdade. A liberdade é uma oportunidade de fazer o bem e de fazer o mal. Em vez dos “cercos sanitários” que a esquerda anda a sugerir, e que apenas comprovam a intolerância dos seus proponentes, devemos concentrar-nos sobre a forma como é usada essa liberdade, seja no que se refere ao racismo ou no que se refere à tentativa de erguer “cercos sanitários”.
Para mim, que sou Católico, a liberdade é uma questão de fé e de educação – coisas que hoje são tendencialmente desprezadas – que implica respeitar os outros, uns mais e outros menos, consoante a forma como usam a sua liberdade.