Em 20 de Março cumpriram-se 20 anos sobre a invasão do Iraque pela coligação liderada pelos Estados Unidos. A operação Iraq Freedom foi uma operação militar bem-sucedida – a campanha vitoriosa durou menos de um mês –, mas o resultado político e geopolítico da guerra relâmpago foi desastroso para o Iraque, para a região e para os próprios interesses norte-americanos.

A causa alegada para a invasão foi a acusação de que Saddam Hussein, o ditador de Bagdad, apoiava os terroristas da Al Qaeda, tinha armas de destruição maciça, químicas e biológicas, e estava prestes a conseguir uma arma nuclear. Tudo isto no quadro do grande medo no Ocidente a seguir ao ataque terrorista aos Estados Unidos do 11 de Setembro.

Saddam não era flor que se cheirasse e a sua descendência masculina (os manos Uday e Qusay) era ainda pior, com histórias que lembravam aqueles abusos e brutalidades dos tiranos antigos. Mas fora um amigo e aliado de conveniência dos EUA na guerra contra o Irão de 1980-1988, com Washington a financiá-lo e a armá-lo generosamente.

Após oito anos de guerra e centenas de milhares de vítimas, a situação fronteiriça ficaria praticamente igual; mas a guerra, apoiada pelo Ocidente, perturbara e exaltara Saddam, levando-o à invasão do Kuwait em 1990 – invasão que os EUA, então governados por George F. Bush, muito sabiamente pararam com a operação Tempestade no Deserto, aprovada pela ONU e pela generalidade da comunidade internacional. Bush-pai e o seu National Security Advisor, Brent Scowcroft, eram patriotas americanos realistas que sabiam que a contenção era uma coisa e o esmagamento do inimigo, deixando o vazio, era outra… E que o messianismo ideológico era perigoso. Por isso, vencidos os iraquianos no terreno e retirados do Kuwait, não se mudou o regime em Bagdad.

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A partir da primeira guerra do Golfo, Saddam ficou submetido a sanções e controles das Nações Unidas. Dez anos depois, para a Administração George W. Bush, muito influenciado pelos chamados neoconservadores, movidos por uma ideologia de globalismo democrático e eufóricos com a ideia do “fim da História”, depois da vitória na Guerra Fria, as sanções não eram já suficientes. Para convencer o Congresso e o povo americano de perigosidade de Saddam, aproveitando a indignação e a cólera pós 11 de Setembro, a estratégia dos neoconservadores orientou-se para apresentar o regime iraquiano como inspirador ou pelo menos cúmplice da Al Qaeda e estando pronto a desencadear uma guerra ofensiva com armas de destruição maciça.

Uma campanha de desinformação

Os Estados Unidos, como reacção ao 11 de Setembro, tinham muito justamente promovido a queda dos talibãs no Afeganistão, que albergava as bases da Al Qaeda. Laico e republicano, Saddam não gostava de fanáticos religiosos e não tinha nada que ver com eles, sendo o Iraque, por isso, um país com uma minoria cristã de mais de um milhão e meio de pessoas. Mas a sorte do regime de Bagdad estava traçada pela campanha de propaganda a nível da opinião pública.

A afirmação de que Saddam estava por trás do 11 de Setembro não tinha qualquer substância, e na comunidade de inteligência houve inicialmente grande resistência a apoiar a tese da Casa Branca, ao ponto de o vice-presidente Dick Cheney ter de exercer sobre elas pressão directa e intimidatória. Essa pressão levou a que as agências de informação se abstivessem de contradizer o governo. Porém, alguns dos seus quadros não se inibiram de confessar off the record o seu cepticismo e preocupação perante a campanha de desinformação em curso.

Depois da invasão do Iraque e da vitória ao fim de quatro semanas de combates, as investigações das autoridades de ocupação americanas viriam a confirmar a não existência de armas de destruição maciça. O absurdo da implicação iraquiana no 11 de Setembro ficaria também claro.

Segundo apuraria depois o Center for Public Integrity, ao longo da campanha, nos dois anos que se seguiram ao 11 de Setembro, as principais figuras da Administração Bush tinham feito centenas de declarações falsas.

Em Agosto de 2002, o vice-presidente Cheney, falando na Convenção Nacional dos Veteranos de Guerra no Estrangeiro, afirmara:

“Não há dúvida que Saddam Hussein tem agora armas de destruição maciça. Não há dúvida de que está a juntá-las para as usar contra os nossos amigos, contra os nossos aliados e contra nós.”

Na altura, na intelligence community havia muito quem se perguntasse de onde lhe teria vindo semelhante informação, já que persistiam grandes dúvidas sobre a posse de armas de destruição maciça dos iraquianos e a sua capacidade ofensiva. Fosse como fosse, estavam ali para fundamentar a vontade dos políticos e tinham de preparar a ida para a guerra. Assim, em finais de Setembro de 2002, com o Congresso prestes a votar o uso da força militar no Iraque, o presidente Bush comunicava:

“O regime iraquiano possui armas químicas e biológicas, está a construir instalações para fazer mais e, de acordo com o governo britânico, tem capacidade para lançar um ataque químico ou biológico em 45 minutos, depois da ordem dada. O Iraque pode ter uma bomba nuclear dentro de um ano.”

Como depois também se apurou, os ingleses, com o primeiro-ministro Tony Blair, foram cúmplices zelosos na intoxicação.

Há hoje inúmeros testemunhos sobre toda esta montagem, que chegou mesmo a criar, no Pentágono, uma unidade especial chamada Office for Special Plans, com o objectivo de estabelecer uma ligação entre Saddam e a Al Qaeda. Para concretizar essa ligação inexistente, inventaram-se reuniões, sobretudo uma, entre Mohammed Atta, o líder do 11 de Setembro, e pessoal superior da inteligência iraquiana, em Praga. Entretanto, no New York Times de 21 de Outubro de 2002, James Risen escrevia que o presidente da Checoslováquia Vaclav Havel telefonara a George Bush, dizendo-lhe que não havia qualquer prova de semelhante encontro.

Em Julho de 2004, uma Comissão de Inteligência do Senado, presidida pelo republicano Pat Roberts, do Kansas, e tendo como Vice-Presidente o democrata Jay Rockefeller, da Virginia Ocidental, concluiu que as informações sobre a existência de armas biológicas e químicas eram falsas. Reconhecia o senador democrata:

“Nós, no Congresso, se soubéssemos o que sabemos hoje, nunca teríamos contribuído com o nosso voto para autorizar esta guerra.”

Efeitos perversos

Hoje ninguém pode duvidar dos efeitos perversos para os Estados Unidos, para o Ocidente e para os seus valores da invasão de há 20 anos. Uma invasão fruto da política de globalização democrática, que depois de um inicial caos, acabou por reforçar, no Médio Oriente, o poder das autocracias, abrindo portas à influência diplomática da China, um poder recém-chegado à região.

Escrevendo no New York Times, em 20 de Março de 2023, Robert Draper, em “Iraq, 20 Years Later: a Changed Washington and a Terrible Toll on America”, lembrava que o Iraque custara aos Estados Unidos, em 20 anos, dois triliões de Dólares, 8500 mortos, entre pessoal militar e das companhias militares privadas, e muitas dezenas de milhares de combatentes com síndromes pós traumáticos. Quanto aos iraquianos, entre a guerra e os oito anos seguintes de ocupação e guerra civil entre sunitas, xiitas, curdos, cristãos e azeris, devem ter morrido meio milhão. Depois da perseguição pelos fundamentalistas islâmicos, do milhão e meio de cristãos só ficaram no Iraque 150 mil.

Nos Estados Unidos, os políticos críticos da intervenção no Iraque, como a democrata Nancy Pelosi e o republicano Donald Trump (que em 2015 classificou a invasão do Iraque como “a tremendous disservice to humanity”), tornaram-se mais populares. Para Draper, a crónica das mentiras e da manipulação da opinião pública em relação ao Iraque gerou, acima de tudo, “uma crescente aversão à intervenção externa, não apenas entre os Democratas, mas também entre os Republicanos”.

Este sentimento é reforçado pelos comentários de alguns dos poucos intervenientes que, então, ousaram opor-se à febre bélica dos neoconservadores e da sua máquina de propaganda: um deles, o general Gregory Newbold, então director de Operações da Junta de Chefes do Estado-Maior General, tinha argumentado, sem eco, que o Iraque estava enfraquecido pelas sanções e não constituía qualquer ameaça para os Estados Unidos.

Newbold, que está agora na Reserva, lembra que os gastos com a guerra e a ocupação do Iraque deixaram o Pentágono “com menos dinheiro para investir em novas tecnologias”, bastando comparar “a capacidade dos chineses nos mísseis hipersónicos e a dimensão das suas forças” com o declínio norte-americano “em navios, em esquadrões da Força Aérea e em brigadas do Exército”.

Hoje, no Médio Oriente, os sauditas, os grandes amigos dos Estados Unidos, afastam-se para uma ambígua “terceira via” no conflito russo-ucraniano, recusando-se a aumentar a produção de petróleo na OPEP; o Irão reconcilia-se com os sauditas por mediação chinesa; e Al-Assad da Síria, sobrevivente graças aos russos, é recebido nos Emirados.

E no Iraque? Vinte anos depois, o Iraque talvez esteja mais livre, mas não está mais feliz. Cartazes do major-general Qassim Suleimani, antigo chefe dos Guardas Revolucionários Islâmicos de Teerão, enfeitam o centro de Bagdad. O iraniano Suleimani foi morto por um drone americano em 2020, mas o seu retrato está por todo o lado na capital do Iraque, simbolizando a influência e o poder que o Irão ali tem hoje, graças à maioria xiita da população. Entretanto, sob uma democracia formal e retórica, prosseguem as lutas entre sunitas e xiitas, os atentados, a violência.

Em Maio passado, num “senior moment”, George W. Bush, durante um discurso sobre Putin, criticou a “totalmente injustificada e brutal invasão do Iraque”. Bush desculpou-se com a idade e a plateia riu-se, mas o “lapso freudiano” tornou-se viral nas redes sociais.

Quem não tem razões para rir, ou sequer para sorrir, são os iraquianos. E os norte-americanos – que prezam os valores da pátria e da liberdade – também não.