1Pode dizer-se, sem grande risc de errar, que, em Portugal, não há, de momento, fortes motivos para discutir a questão da obrigatoriedade da vacinação. Na verdade, desde há décadas, que o Programa Nacional de Vacinação tem constituído, no nosso País, um êxito indiscutível. A vacinação das crianças, desde a mais tenra idade, não suscita de um modo geral animosidade ou resistência. Os pais, na sua enorme maioria, acorrem e aceitam, sem dificuldade, vacinar as suas crianças. Creio que muitos até julgarão que as vacinas são obrigatórias, o que não é o caso.

Relativamente à vacinação contra a Covid-19, há que reconhecer o mérito do programa superiormente dirigido pelo Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo. Tem-se assistido a taxas de vacinação muito elevadas e, ao contrário do que acontece noutros países europeus (como na França ou na Grécia), mas também nos Estados Unidos, não tem havido reações de recusa da vacinação em número significativo. A grande adesão à vacinação de adultos, neste caso, prende-se talvez com a tradição da “vacinação universal, gratuita e voluntária”.  Assim sendo, percebe-se a posição de médicos e especialistas no sentido da desnecessidade – quiçá, da inconveniência – em lançar o debate sobre a obrigatoriedade da vacina. Deverá insistir-se na mobilização das pessoas a vacinar, que permitirá alcançar a desejada libertação da nossa sociedade e da nossa economia. Em vez de se exigir, deverá adotar-se uma política de incentivos, assente em medida indiretas. A exigência da apresentação do certificado digital de vacinação para um número bastante significativo de atividades ou prestações é, disso, um exemplo [1].

Entretanto, durante o debate sobre o “Estado da Nação”, foi anunciado que se aproxima a data em que as crianças e os jovens entre os 12 e os 17 anos começarão a ser vacinados, processo que se concluirá antes do (re)começo das aulas. A vacinação deste grupo etário suscita, no entanto, divergências e problemas de caráter ético. Na verdade, não se têm registado casos graves da doença em crianças e jovens que não tenham co-morbilidades.  Significa isto que a sua vacinação, que, por muito segura que seja, envolve sempre o risco inerente a toda e qualquer vacina, é vista com alguma relutância por diversos especialistas. É verdade que a vacinação da população escolar confere aos vacinados um grau suplementar de proteção, aumenta a probabilidade de que as escolas não fechem e reduz o risco de serem fatores de contágio de outras pessoas mais vulneráveis. Trata-se, no entanto, de razões de alcance altruísta e de dimensão comunitária. Para os próprios vacinados, numa perspetiva individualista, mesmo que venham a contrair a doença, há que reconhecer que – porque são jovens (e se são saudáveis) – a mesma não representa um risco considerável para a sua saúde. Daí que pareça para já sensato seguir o entendimento de conceituados especialistas: “Neste momento, a obrigatoriedade não deve ser equacionada em Portugal, independentemente da profissão e do sector” ([2]).

Porém Portugal não “navega” sozinho na Europa e no Mundo. Daí que, em países onde  a recusa da inoculação da vacina atinge números muito mais expressivos e onde se corre o risco de, por esse motivo, não ser possível alcançar em tempo adequado a imunidade de grupo, seja importante e oportuno acompanhar o debate sobre a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19, mormente em setores mais vulneráveis, como é o caso dos profissionais de saúde, dos cuidadores e trabalhadores nos lares.

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Diga-se que, na Constituição da República Portuguesa, se poderão encontrar frágeis subsídios a respeito desta questão: um contra e o outro a favor da vacinação obrigatória.

Contra: o artigo 25º, nº 1, sobre o “direito à integridade pessoal”, segundo o qual “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”. A favor: o artigo 64º, sobre “Saúde”, cujo nº 1 consagra que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”.

Todavia, o juízo sobre a conformidade/desconformidade constitucional da vacinação obrigatória deverá radicar na análise sobre a eventual violação do princípio da proporcionalidade (entre a restrição à liberdade e o direito à saúde) no caso em análise.

Assim, numa situação hipotética de descontrolo da pandemia, a admissibilidade constitucional da obrigatoriedade da vacina dependeria da necessidade de se alcançar a imunidade de grupo. Se, até ao surgimento da variante delta, a fasquia dos 70% parecia viável para se chegar à proteção da comunidade, esta nova variante, muito mais transmissível, fez com que hoje já se conceba como eventualmente “necessária” para tal a vacinação de 80% ou, mesmo, de 90% da população. Se, no primeiro caso, seria desproporcionada a imposição da vacinação, já o mesmo não aconteceria no segundo[3].

Afirma Tiago Soares[4], “o Estado apenas pode obrigar um cidadão resistente à vacina a ser inoculado se isto fosse necessário não só para proteger esse cidadão mas também todos os outros cidadãos já vacinados.”

Mas deverá ter-se em atenção a prevenção feita por Paulo Otero: “tornar obrigatória a vacinação contra a covtd-19 só seria possível com o estado de emergência em vigor”: E acrescenta: “E mesmo em estado de emergência teriam de ser razões ponderosas a justificar essa obrigatoriedade”.

2 Uma vez que também está na ordem do dia a vacinação dos jovens, lembrei-me de um acórdão recente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), sobre a temática da vacinação de crianças. Para quem possa interessar, trata-se do acórdão de 8 de abril de 2021, proferido no caso “Vavricka e outros contra a República Checa”, que permite refletir sobre alguns dos mais importantes problemas jurídicos colocados pela obrigação legal da vacinação.

É importante notar que este caso não incide sobre a vacinação contra a COVID-19, debruçando-se antes sobre a vacinação obrigatória de crianças contra várias doenças infecciosas graves e bem conhecidas (como a difteria, tétano, tosse convulsa, infeções por Haemophilus influenzae tipo b, poliomielite, hepatite B, sarampo, papeira e rubéola), constantes da generalidade dos catálogos dos Programas Nacionais de Vacinação.

Este acórdão aborda o caso de alguns pais que – não tendo cumprido a obrigação legal de vacinação dos seus filhos, a maioria em idade pré-escolar – se viram na impossibilidade de os inscrever na creche, ou a quem foram aplicadas coimas (num caso em que os seus filhos já estavam em idade escolar).

O TEDH reconhece uma ampla margem de apreciação aos Estados nestas matérias, baseando-se em que: (a) existe um consenso geral entre os Estados contratantes[5] firmemente apoiado pelos organismos internacionais especializados, segundo o qual a vacinação é uma das intervenções médicas que apresentam maior eficácia e a mais favorável relação custo-benefício; (b) todos os Estados devem empenhar-se em atingir a taxa de vacinação mais alta que for possível; (c) as questões de saúde pública dependem da margem de apreciação das autoridades nacionais, as mais bem colocadas para avaliar as prioridades e as necessidades da sociedade; (d)  o interesse superior da criança sobreleva em todas as decisões que lhes digam respeito; (e) na grande maioria dos casos, o objetivo que consiste em que todas as crianças sejam protegidas contra as doenças graves é atingido pela administração às mesmas, desde a mais tenra idade, das vacinas previstas no programa de vacinação aprovado pelas autoridades de saúde; (f) por outras palavras, a sua proteção residirá na imunidade de grupo; (g) assim, quando se concluir que uma política voluntária de vacinação é insuficiente para a obtenção e preservação da imunidade de grupo, admite-se a adoção de uma política de vacinação obrigatória, a fim de se alcançar um nível adequado de proteção contra as doenças graves.

Nestas circunstâncias, o Tribunal entendeu que a política de saúde do Estado requerido – a República Checa – é compatível com o superior interesse das crianças. Analisado o regime nacional aí em vigor à luz do princípio da proporcionalidade, o TEDH constatou que as sanções aplicadas mais não eram que uma forma indireta de fazer respeitar a obrigação de vacinação e considerou que a coima aplicada não era demasiado pesada e que a proibição de inscrição das crianças na creche não tinha uma natureza punitiva mas apenas pretendia proteger a saúde dos jovens alunos daquele estabelecimento.

Em relação à inocuidade das vacinas, o Tribunal reconhece a existência de um risco, muito raro, mas inegavelmente sério para a saúde, e recorda que é importante tomar as precauções que se impõem antes da vacinação, controlando designadamente a inocuidade das vacinas utilizadas e procurando, em cada caso, eventuais contraindicações. Não se põe aliás em causa o caráter adequado do regime checo de vacinação, até porque concede uma certa latitude tanto á escolha da vacina quanto ao calendário da vacinação – termos em que o Tribunal decidiu (por dezasseis votos contra um) no sentido da não violação por parte da República Checa do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [6].

[1]) Mas, segundo Paulo Otero, a aplicação de medidas indiretas, como por exemplo não dar acesso a estabelecimentos públicos a quem não estiver vacinado para preservar a comunidade, iria “necessitar que o estado de emergência estivesse em vigor”. Tanto mais, lembra o constitucionalista, que “a lei portuguesa (ainda) não está preparada para pandemias”.
[2] Cfr. Susana Silva, citada por Tiago Soares, “Expresso”, edição online de 19 de julho de 2021.

[3] No entendimento de José Pereira da Silva – cfr.loc.cit.na nota anterior.
[4] InVacinação obrigatória? Um esclarecimento sobre a Constituição, o risco de criminalização e as melhores formas de persuadir”, Jornal “Expresso”, edição online de 19 de julho de 2021.
[5] Que são hoje 47 Estados as Partes Contratantes na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

[6] Que garante o direito ao respeito da vida privada, na medida em que nele se inclui o direito à integridade física.