Apetece-me começar esta crónica com a pergunta implícita no artigo de Nuno Severiano Teixeira, inPúblico: “Como acaba uma guerra”.

O articulista escreve, a propósito da “guerra”, que se sabe sempre como começa, mas nunca se sabe como acaba. E logo acrescenta: “e se alguma coisa a história nos ensina, é que é muito mais fácil começar uma guerra do que pôr-lhe fim”.

A última grande iniciativa com vista à abertura de um corredor humanitário que permitisse a evacuação de civis encurralados na grande metalúrgica de Azovstal, a última bolsa de resistência ucraniana em Mariupol, foi desencadeada pelo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. Primeiro em Moscovo, Guterres foi claro nas palavras que dirigiu quer ao Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, quer em seguida na conversa à já célebre “mesa das distâncias” do Kremlin, ao próprio Putin, António Guterres interpelou os seus interlocutores sobre a invasão à Ucrânia e a violação que a mesma representava ao Direito Internacional com todo o cortejo de crueldade contra civis e a destruição de alvos não militares, numa estratégia de “terra queimada” levada a cabo sistematicamente  pelos russos. Apesar do desagrado dos líderes russos, Guterres alcançou um assinalável êxito parcial, uma vez que foi aberto o corredor que permitiu a saída para Zaporhizhia de largas dezenas de civis. Não sendo a totalidade, foi, no entanto, um passo importante no sentido humanitário, ao qual se seguiu ontem, dia 4, a evacuação de mais três centenas de civis.

Se dúvidas houvesse sobre o incómodo dos chefes russos perante o desassombro do Secretário-Geral da ONU, basta recordar os mísseis que as forças invasoras lançaram sobre Kiev, no dia da reunião de Guterres com o Presidente Zelensky, um dos quais atingiu um edifício situado a cerca de 5 quilómetros do local onde a reunião acabara de terminar.

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Mais claro do que quaisquer palavras, o lançamento dos mísseis evidenciou com meridiana clareza o desprezo dos autocratas russos pelas missões de natureza humanitária. Assim deixaram mais uma vez a marca da intolerância e do desrespeito pela primeira figura da ONU, sempre coerentes com as antecedentes posições de violação da Carta das Nações Unidas! Só reconhecem a lei da força. Assim sendo, qual a margem de manobra da ONU e do seu Secretário-Geral, quando a Rússia tem poder de veto nas deliberações do Conselho de Segurança?

Como era previsível – para não dizer inevitável – a Rússia aumentou o poder de fogo sobre o Leste, o Sul, mas também outras zonas da Ucrânia, como Kiev e, até, Lviv, com rajadas mais cerradas, continuadas e destrutivas.

Soube-se, entretanto, que, nos bombardeamentos ao teatro de Mariupol, desencadeado pelas tropas russas no passado dia 16 de março, terão morrido cerca de seiscentos ucranianos, o que, a confirmar-se, transforma este bombardeamento no mais letal de toda a guerra até aos dias de hoje, podendo ser o mais grave crime de guerra dos invasores contra civis inocentes. Entretanto, os meios de comunicação social dão conta dos mísseis que caíram no centro de Dnipro, tendo atingido a estação de comboios da cidade. Também Mikolayiv foi atingida pelos mísseis russos, que prosseguem com redobrado vigor bélico o ataque ao Leste e ao Sul, procurando ligá-los numa ampla faixa territorial que controlem e que corte, com a tomada de Odessa, a comunicação da Ucrânia com o mar.

Entretanto, num gesto de aparente boa vontade, a Rússia anunciou o cessar-fogo no complexo metalúrgico de Azovestal, por forma a permitir a evacuação dos civis, entre os quais cerca de 30 crianças, ainda encarcerados nos túneis subterrâneos da antiga fábrica, tornada fortaleza onde ainda operam numa resistência sem amanhã, tropas pró-ucranianas do Batalhão AZOV. Para viabilizar tal evacuação de civis, as forças russas informam que foi permitida a abertura de corredores humanitários entre as 08.00 e as 18.00 horas. Mas, ao mesmo tempo, anunciam que já entraram por duas vezes em Azovestal, o que é confirmado do lado ucraniano por comandantes do Batalhão Azov, que afirmam estarem em curso combates sangrentos entre os contendores. Trata-se, segundo penso, de um objetivo muito aguardado pelo Kremlin, que deseja poder anunciar o aniquilamento total dos neo-nazis do Batalhão Azov nas celebrações de 9 de maio próximo, que comemoram a vitória da antiga União Soviética na II Grande Guerra.

E assim chegamos à interrogação que deu o título a esta crónica: “E depois do 9 de maio”? Será que Putin vai declarar mesmo guerra à Ucrânia? Ou será que vai declarar um termo para a guerra (ainda não declarada pela Rússia)?; Ou, o que será, porventura, o mais provável, não fará uma coisa nem a outra? Nesse caso, além de celebrar as vitórias alcançadas, colorindo como sucessos e travestindo em êxitos as próprias derrotas da primeira fase da “guerra”, com a campanha do Norte e o cerco a Kiev, o mais provável é assistirmos a uma impressionante operação de força, com uma parada militar que integre o arsenal convencional disponível. Tudo ao melhor estilo da antiga URSS, que não deixará por certo de exibir as ogivas nucleares que aterrorizam o mundo.

Por cá (riam-se!) recebemos, na C.M. de Setúbal, com cidadãos russos afetos a Putin, os refugiados ucranianos, a quem se recolheram ilicitamente dados pessoais que se encaminharam para destino desconhecido ou ainda não divulgado. Pelo exemplo da CML, fazemos uma pequena ideia quanto ao “para onde”… O que é que as nossas autoridades responsáveis por estes assuntos têm na cabeça? Onde o senso, a prudência, a des-confiança, a solicitude, a sensibilidade, a seriedade, para tratar um assunto tão complexo e de tanto melindre quanto este? É que nisto não se improvisa!!!

É tempo de voltarmos ao artigo do Professor catedrático da Universidade Nova, Severiano Teixeira, que formula a seguinte questão: “Como poderá acabar a guerra de Putin contra a Ucrânia? Não sabemos. Nem os modelos históricos nos dizem com precisão. Mas podem dar-nos o quadro das possibilidades. Um cenário de vitória decisiva e capitulação incondicional está fora de causa. De um lado e de outro. A Rússia tem acumulado fracassos militares e humilhações públicas: a retirada de Kiev, o afundamento do Moskva, a morte de oficiais generais e o ferimento do próprio chefe do Estado-maior de Exército. Para além de pesadas baixas humanas e perda de material. E teve de rever em baixa os seus objetivos políticos- Abandonar a mudança de regime a ocupação, para se concentrar no Donbass e numa eventual divisão do país”.

Assim, porque nem a Rússia ganhou a guerra nem a Ucrânia a perdeu, talvez o mais provável possa ser uma solução inconclusiva, sem cessar-fogo nem acordo de paz., ou seja, nem boa nem má, antes pelo contrário… Mas há um pequeno-enorme senão: e o ódio que se ateou, e o risco a fogo que se desenhou esfacelando um território com corpo e alma de nação? E os milhões de ucranianos chorando pelo mundo fora a sua patria, si bella e perduta, como os escravos hebreus no célebre hino de Verdi?

Lisboa, 5 de maio de 2022