Desde que esta crise começou, que sabemos que as crianças são pouco afectadas pelo vírus que provoca a Covid, mas um estudo recente, feito no Reino Unido, concluiu que a taxa de mortalidade abaixo dos 18 anos é de 0,005 por cento. Já sei que quem compara este vírus com o da gripe é imediatamente desacreditado e rotulado como ignorante, mas com os dados que temos tudo indica que, para os mais jovens, a Covid-19 é menos perigosa que a gripe.

Durante todos estes meses ouvimos dizer que as crianças podiam pôr em risco os avós ou os pais. Mas, à medida que foram saindo novas investigações, também foi possível concluir que as crianças tinham um papel muito reduzido na propagação da doença e eram mais frequentemente infectadas por adultos do que o contrário.

No entanto, continuámos a fechar escolas mais tempo do que qualquer outro país da Europa e a ir contra as recomendações da OMS para quem as máscaras não devem ser usadas antes dos 12 anos de idade.

Somos um país com uma enorme aversão ao risco. Isto vê-se no pouco tempo que as nossas crianças têm para brincar livremente, no reduzido número de crianças que vemos nas ruas sozinhas e até na falta de desafios que existem nos nossos parques infantis. E no nível de sacrifícios que temos imposto às nossas crianças desde que tudo isto começou e que é superior à maioria dos outros países.

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Temos medo de deixar as crianças correr na rua livremente, temos medo que subam às árvores e que vão para a escola sozinhas. E, de há um ano para cá, começámos quase a ter medo que respirem, pelo menos perto de nós. Sei de casos de crianças que passaram semanas fechadas no quarto por causa de um teste positivo, com tabuleiros de comida deixados à porta, como mandam as regras da DGS.

E apesar desta obessão com a segurança que estamos a viver, não compreendemos aquilo que faz com que uma criança esteja realmente segura: ter na sua vida adultos presentes e disponíveis com a regularidade e a frequência adequadas à sua idade. Não podemos proteger as nossas crianças dos riscos que existem no mundo mas aquilo que mostram todas as teorias do desenvolvimento é que, se esta ligação segura existir, eles estarão muito mais bem preparados para os enfrentar.

E, tendo em conta que as nossas crianças passam muito tempo na escola, demasiado até (também nisso Portugal tem dos piores números da Europa), é fundamental que a escola se torne num lugar seguro, onde a criança possa também estabelecer relações de segurança com os adultos. Quando isto não acontece, temos crianças que passam o dia todo em modo de alerta, comprometendo o seu desenvolvimento. Níveis de stress elevados impedem o desenvolvimento de determinadas estruturas cerebrais que são fundamentais para que o amadurecimento aconteça. Crescer em tamanho nem sempre é sinónimo de amadurecer, por isso temos tantos adultos imaturos. Para que este amadurecimento aconteça, a criança tem que se sentir segura o suficiente para que possa desactivar o seu sistema de alerta.

E é muito fácil as crianças ficarem em alerta quando os pais são proibidos de entrar na escola, o que lhes transmite a mensagem de que aquele é um mundo estranho e potencialmente perigoso (porque o instinto das crianças lhes diz que precisam de ficar perto dos pais, sobretudo quando estão em sítios que ainda não lhes são familiares), quando não podem ver o rosto dos seus cuidadores (limitando a sua possibilidade de ler e interpretar a comunicação não verbal), quando as fazem sentir que precisam de ser responsáveis pela sua própria segurança (as crianças precisam de se sentir protegidas pelos adultos), obrigando-as a manter uma máscara, a desinfectar constantemente as mãos ou a manterem o afastamento, quando as fazem sentir que existe um perigo constante e invisível que as pode pôr em risco e, ainda mais, quando as fazem sentir que o perigo podem ser elas.

Precisamos de escolas onde as crianças se sintam seguras não só fisicamente, mas emocionalmente também. É altura de começarmos a proteger as crianças. E de pormos o seu bem-estar à frente do nosso, porque uma sociedade que não protege as crianças só pode ser uma sociedade profundamente doente e desligada dos seus instintos e emoções.

As crianças precisam de brincar e os adolescentes precisam de conviver. Uma das tarefas essenciais da adolescência é o afastamento da família: os adolescentes precisam de descobrir o seu lugar no mundo e não podem fazê-lo se os impedirmos de sair, de conviver, de estar com os amigos. E não, isso não se faz através de um ecrã. O aumento do uso de ecrãs durante a adolescência está fortemente correlacionado com o aumento das tentativas de suicídio. Estamos programados para estar com as pessoas ao vivo e nada pode substituir isso, precisamos de toque.

Durante toda esta crise muitas pessoas afirmaram que precisávamos de usar as tecnologias para manter e fortalecer as ligações. Mas esta é uma visão superficial das coisas. Primeiro, porque consoante a idade, temos necessidades muito diferentes a este nível. Um bebé precisa muito mais de toque e da presença física do que uma criança mais velha. Mas uma criança ainda precisa mais da presença física do que um adulto. Por isso, para as crianças , os ecrãs simplesmente não servem de substituto, principalmente para as mais pequenas. Mas mesmo os adolescentes ainda têm mais necessidade dessa presença do que um adulto. E mesmo para um adulto, essa necessidade, varia com as circunstâncias e também com o seu grau de maturidade emocional. Mesmo um adulto maduro, nos momentos difíceis e de crise pode precisar do toque para se sentir seguro com alguém. Além disso, as relações não podem manter-se eternamente à distância. Por muito que usemos a tecnologia para comunicar, chega sempre uma altura em que nada substitui o toque e o corpo da outra pessoa à nossa frente. E negar isto é negar tudo aquilo que nos torna humanos.

Depois, também é fundamental reconhecer que não precisamos só das relações profundas. Também precisamos daquelas mais superficiais que fazem parte do nosso dia-a-dia quando tudo funciona normalmente e podemos sair de casa para trabalhar, levar os filhos à escola, ir ao café, etc. Precisamos mesmo daquelas pessoas a quem só dizemos bom dia, boa tarde e com quem nunca faríamos uma videochamada. Precisamos destas relações para nos sentirmos parte do grupo, parte da tribo. Estas são fundamentais para o nosso bem-estar porque, enquanto humanos, evoluímos em comunidades e temos que nos sentir parte delas.

As pessoas mais extrovertidas precisarão destas interacções em maiores quantidades, mas isso não quer dizer que não façam falta às introvertidas. Vejo muitos adultos em teletrabalho que, no início, até abraçaram com prazer a ideia de trabalhar a partir de casa e neste momento estão completamente deprimidos por falta desses contactos, desse sentimento de pertença e dos pequenos intervalos e conversas que podiam ir tendo com os colegas de trabalho, por muito superficiais que fossem.

Então pergunto: quando podemos libertar as crianças e, já agora, também os seus pais, deste medo que nos domina há tanto tempo?

Este ano lectivo tivemos crianças que nunca viram a cara completa dos seus professores sem ser através de um ecrã. Professores que nunca viram a cara dos seus alunos ao vivo. Existem muitos bebés de um ano que mal estiveram com outros adultos além da mãe e do pai e que nunca foram ao colo dos avós. Tivemos adolescentes proibidos de ver a cara dos colegas o dia inteiro e crianças de 10 anos que passaram os intervalos na sala a olhar para o telemóvel. Tivemos professores que não deixavam as crianças usarem o seu giz – tinham que levar um de casa se quisessem ir ao quadro. Tivemos miúdos a desinfectar as mãos várias vezes por dia com álcool gel que tem um efeito destruidor para as bactérias da pele. E, neste momento, temos um número anormalmente alto, para esta altura do ano, de crianças internadas com viroses vulgares bem mais perigosas para elas, mas com as quais nunca nos preocupámos, e pediatras a explicar que isto aconteceu por causa de todas as medidas e do défice imunitário que elas criaram. Tivemos professores a chamar criminosos aos alunos que faziam apenas aquilo que o seu instinto manda e que é fundamental para o seu desenvolvimento: conviver com os amigos. Ainda temos polícias que perseguem jovens que se juntam à noite. E temos cada vez mais pessoas vacinadas e imunes por terem tido o vírus. De que é que precisamos mais para libertarmos as crianças? E, já agora, os adolescentes e adultos também.

As nossas crianças e jovens estiveram sempre na linha da frente durante este último ano e meio. Sacrificámos o seu futuro, criando mais pobreza; o seu bem-estar, impedindo-as de brincar livremente; a sua saúde mental com regras absurdas e a sua saúde física a curto e a longo prazo. É altura de dizer basta.  Ainda há quem ache que devemos sacrificá-las com uma vacina que pode trazer-lhes mais riscos do que o próprio vírus, apenas para proteger os mais velhos. Não podemos deixar que isso aconteça. É altura de reconhecer que os nossos jovens já fizeram demasiados sacríficios, é altura de os compensarmos por tudo aquilo a que já foram sujeitos, não de criar ainda mais riscos e prejuízos com uma vacina de que nunca precisaram. É altura de assumir o que sabemos, de reconhecer que as crianças nunca estiveram em perigo e que precisamos de as começar a proteger se quisermos ter alguma hipótese de sair deste modelo doente de sociedade que estamos a criar com todo o medo difundido nestes últimos tempos. É que a desculpa de que este é um vírus novo também se vai tornando cada vez mais velha.