Entrámos numa nova fase de restrições e precisamos de entrar numa nova fase de debate sobre este tema. Já é inquestionável que as medidas causam estragos na saúde mental, no desenvolvimento de crianças e jovens, na economia e na saúde pela falta de assistência médica em todas as doenças não covid mas também pela pobreza que está a ser acentuada e a pobreza gera sempre doença.

Estas restrições têm sido apresentadas como sendo mais suaves mas a verdade é que são mais graves do que as anteriores porque violam a base de tudo aquilo que temos vindo a conquistar e que precisamos de preservar numa sociedade saudável: o princípio da tolerância e da não discriminação. São restrições que servem para criar bodes expiatórios e voltar uns contra os outros embora a ciência mostre que não há qualquer razão válida para discriminar quem não está vacinado, já que estas vacinas não são esterilizantes, ou seja, não impedem o contágio.

E são restrições que deixam graves marcas na saúde da nossa democracia e abrem portas que nunca deviam ter sido abertas numa sociedade que se queira realmente democrática.

O maior exemplo de todo o absurdo que vivemos é a vacinação de crianças e adolescentes. Estas faixas etárias nunca foram vacinadas para a gripe, uma doença que os afecta bem mais e que também mata muitas pessoas vulneráveis por ano – ou pelo menos matava, antigamente. Então porque é que as vacinas até já estão compradas, mesmo contra a opinião dos peritos?

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Um dos argumentos para os que querem vacinar as crianças é a sua saúde mental, tal e qual como já aconteceu com os adolescentes. Isto demonstra que até os mais fervorosos defensores das medidas admitem que a saúde mental das crianças tem sido posta em causa. Mas esta pode ser cuidada se deixarmos de as fazer sentir que têm de proteger os adultos que, supostamente, estarão já protegidos. E nunca é demais lembrar que, em Portugal, as crianças têm estado sujeitas a regras muito mais prejudiciais do que em muitos outros países e que estes conseguiram protejer as crianças sem que daí tenha resultado nenhum risco adicional para a população mais velha.

Como seres humanos temos um enviesamento cognitivo que nos leva a ampliar o risco e a prestar mais atenção ao que pode ser perigoso. Uma sondagem feita há algum tempo mostrou que a grande maioria das pessoas avaliava este vírus como tendo uma taxa de mortalidade muito superior à real. Já tive conversas em que as pessoas me diziam reconhecer o impacto das medidas sobre a saúde mental, mas que se não fossem aplicadas, ainda seria pior porque todas as famílias teriam mortes a lamentar. Uma colega chegou a dizer-me que as crianças sofreriam muito mais sem elas porque todas perderiam pais e avós. Mas esta visão catastrófica anda muito longe daquela que é a realidade do vírus embora seja fácil esquecer isto quando vemos as notícias, ouvimos as comunicações do governo ou da DGS e quando constatamos as regras criadas.

Mas mesmo que a taxa de mortalidade da covid fosse semelhante à do Ébola, continuava a ser importante saber que existem fronteiras que não podemos transpor numa democracia. Se queremos uma sociedade madura temos que começar a tratar as pessoas como tal e a confiar na sua capacidade de decisão e responsabilidade. E, claro, se estivéssemos a lidar com algo semelhante ao Ébola não precisaríamos das regras do governo porque cada pessoa sentiria a necessidade de se proteger, bastaria que houvesse uma informação clara sobre como minimizar os riscos. Se víssemos pessoas a morrer à nossa volta as comunicações oficiais precisariam de servir para diminuir o pânico e não para o alimentar como tem acontecido.

Um bom exemplo é a Suécia, país que se tornou quase o elefante dentro da sala porque é fácil observar que, sem desrespeitar as pessoas, sem tratar os seus cidadãos como incapazes ou incompetentes, sem prejudicar o desenvolvimento das crianças e sem afectar tanto a economia, continua ter melhores resultados do que nós em quase todos os parâmetros, incluindo o número de mortes por covid. Algumas pessoas diziam que não podemos comparar os portugueses com os suecos porque eles vivem de maneira diferente. Mas tendo em conta a nossa taxa de vacinação e a avaliar pela quantidade de pessoas que usa máscara na rua e que continuou a usar máscara em todos os locais fechados mesmo quando ela deixou de ser obrigatória, não podemos afirmar que os portugueses não são bons cumpridores. Antes pelo contrário: em Portugal temos uma enorme aversão ao risco ao mesmo tempo que o facto de sermos um país pequeno também nos leva a ter uma grande preocupação com aquilo que os outros irão pensar de nós. E isto faz-nos querer cumprir as regras, pelo menos naquilo em que elas são visíveis, porque também conheço pessoas que defenderam muito as medidas e depois passaram o confinamento a entrar e sair de casa umas das outras.

O que é perfeitamente natural porque os seres humanos precisam de pessoas e os ecrãs não saciam a nossa necessidade de contacto humano da mesma forma que a presença física de outra pessoa o pode fazer. Toda a manipulação a que temos sido sujeitos cria a sensação de que algumas pessoas do nosso círculo mais próximo são puras e por isso podemos estar à vontade com elas enquanto o resto do mundo é impuro e perigoso. Somos animais tribais e todos os momentos de perigo nos fazem querer sentir mais próximos da nossa tribo e com uma tendência a ver o outro como inimigo. Por isso acabamos por nos aproximar mais daqueles que identificamos como parte da tribo e tentamos manter os restantes à distância.

E infelizmente algumas pessoas exploram isto e tentam fazer com que aqueles que estão fora da tribo (todos os que questionam a utilidade destas vacinas) sejam vistos como o bode expiatório de tudo o que corre mal. Porque outra característica profundamente humana é a necessidade de sentir que temos algum controlo sobre as situações. E, quando elas não são controláveis, como é o caso de um vírus destes, acabamos muito facilmente por recorrer ao pensamento mágico e à crença de que talvez consigamos fazer com que tudo volte a ficar bem se sacrificarmos aqueles que nos parecem uma ameaça.

E todos aqueles que defendem a liberdade, nesta fase, são facilmente vistos como uma ameaça por esse pensamento imaturo que nos faz acreditar que todos os que não pensam e não agem como nós são o inimigo. Pensamento que está na base de todas as guerras.

Fomos condicionados para ver a defesa da liberdade como algo egoísta neste momento. Mas isto não podia ser mais falso. A liberdade é aquilo que nos protege a todos. A liberdade é o que garante que seremos respeitados nas nossas escolhas e decisões, que hoje serão sobre ser ou não vacinado mas amanhã podem ser sobre algo muito diferente. Porque quando o estado tem demasiado poder sobre a vida das pessoas nunca sabemos onde é que esse poder acaba. Há quem defenda que o objectivo de todo o medo e de todas estas medidas é que venhamos a aceitar uma identidade digital, que permita ao Estado controlar todos os nossos passos, rumo a um sistema de créditos sociais como o que já existe na China.

Não sei se isto é algo intencional mas não posso deixar de constatar que, passo a passo, estamos cada vez mais perto disso. Por exemplo, quando começaram as limitações nos restaurantes havia a possibilidade de fazer um teste na hora, agora só é aceite o certificado, o que implica fazer um teste na farmácia ou laboratório. Hoje somos impedidos de entrar num restaurante a pretexto da covid, amanhã podemos ser impedidos de fazer qualquer outra coisa se não tivermos preenchido a nossa quota de créditos sociais. É assim que já se vive na China.

As pessoas dizem que isto há-de passar. Não tenho dúvidas de que o medo da covid passará, até porque cada vez menos pessoas sentem um medo real do vírus. Quando se abusa do medo para condicionar o comportamento há sempre uma altura em que precisamos de o desligar. É este o problema de uma educação com base em castigos ou ameaças: quando o medo é excessivo a criança sente necessidade de se desligar dele para ser capaz de continuar a viver e aí nenhuma ameaça consegue trazê-lo de volta. O mesmo pode estar a acontecer com a covid. O problema é que as pessoas se habituam a viver com as restrições e como elas vão sendo impostas de forma gradual é mais fácil que essa habituação aconteça. Se há dois anos nos dissessem que teríamos de mostrar dados médicos para entrar num restaurante ou ginásio isto seria impensável. Mas começámos só com quinze dias, só para achatar a curva, e vejam onde já chegámos.

Agora aquilo que precisamos de perceber é que para quem toma as decisões o mundo nunca esteve tão bom. As pessoas nunca foram tão fáceis de governar. Temos aceitado tudo o que nos é imposto. Qual será a razão para que, no dia em que finalmente se esgotar o tema da covid, não apareça outra razão qualquer para manter ou até aumentar as restrições?

Numa relação abusiva, como aquela em que nos encontramos, não é o abusador que decide parar os abusos. Enquanto a vítima não decidir sair da relação, enquanto não decidir que as ameaças já não têm efeito sobre si, os abusos terão sempre tendência para continuar. O abusador está confortável. É a vítima que tem de pôr fim aos abusos.

Sabemos que aquilo que mais causa stress e ansiedade é a sensação de que não controlamos as nossas circunstâncias. Um dos factores mais difíceis desta crise é justamente o não sabermos quando irá acabar. Pois bem, é importante recuperarmos o nosso poder, a nossa sensação de controlo e saber que ela acaba quando cada um de nós quiser. Quando tivermos coragem de enfrentar as ameaças e tomarmos consciência de que elas não têm um poder real, apenas aquele que lhes dermos. Porque afinal, por enquanto, somos donos das nossas vidas e vivemos num país em que ainda existem alguns direitos. É é fundamental que lutemos por eles se quisermos que os nossos filhos ainda os tenham quando crescerem.